terça-feira, 12 de março de 2013

Sobre torturas, greve de fome e mortes violentas nos presídios cearenses.

No dia 21 de fevereiro de 2013, o jornal O Povo noticiou, em reportagem assinada por Thiago Paiva, que "Presos fazem greve de fome por melhorias nas CPPLs". De um lado, a Sejus explica a greve de fome como uma reação ao endurecimento de vistorias, apreensões de celulares e descobertas de planos de fuga. De outro, a coordenação da Pastoral Carcerária fala de crimes de tortura no sistema. Quem divulgou a lista de reivindicações foi a própria Sejus, segundo a reportagem. De modo que não temos como saber se a lista é a lista de prioridades das reivindicações dos presos ou apenas alguns de seus componentes apresentados de modo descontextualizados, o que dá a entender que os presos estão pedindo regalias, como aparelhos de televisão e sanduicheiras nas celas.
A voz dos presos não aparece em nenhum momento, o jornalista Thiago Paiva me esclareceu em comunicação pessoal que não teve acesso aos presos, a situação não permitia. Para o repórter o Pe. Marco Passerini afirmou que: “São questões antigas, problemas de tortura que se arrastam há anos. O problema é que as denúncias são feitas pelos presos e seus familiares, e quase sempre a informação deles não tem valor. É sempre a voz deles contra a da Secretaria”. Sejus diante da denúncia do padre, afirma que desconhece torturas como motivação da greve de fome. Sejus reafirma que motivação seria rigor de vistorias.
A meu ver, é imprescindível que consigamos entrevistar os líderes dessa greve de fome para que eles possam nos dizer com suas próprias palavras quais foram suas motivações. E se a lista que Sejus apresentou como sendo as reivindicações deles é confirmada como sendo a prioridade do movimento de greve de fome, que, diga-se de passagem, é um recurso extremo adotado em situações drásticas por presos no mundo todo, uma greve de fome de presos não pode passar desapercebida. Quais autoridades apuraram os fatos? Quem coletou depoimentos dos líderes da greve de fome para checar a veracidade das versões da Sejus e da Pastoral Carcerária? São desdobramentos que temos que fazer com esforços convergentes de pesquisa para alcançarmos mais dados sobre o que está se passando de fato nos presídios. É interessante notar que o repórter Thiago Paiva captou com seu texto a contradição básica que há entre o que afirma a Pastoral Carcerária, falando em nome dos presos em greve de fome, e o que afirma a assessoria de imprensa da Sejus.
Aliás, um tema sério como esse precisaria ser respondido por alguém mais do que a assessoria de imprensa. Greve de fome no sistema prisional motivada por denúncias de crimes de tortura, já tendo casos de tortura que foram apurados e portanto evidenciam a persistência da prática, isso tinha que ser respondido pela titular da pasta da Sejus ou pelo governador. Ninguém cobrou isso na sociedade e na imprensa, que eu saiba. No dia 22 de fevereiro, outra matéria do O Povo noticia o fim da greve de fome. "Greve de fome chega a 72h na CPPL I", assinada pela Redação O Povo on line. O que me impressiona nesses eventos é que 20 dias depois de uma greve de fome no CPPL I explode uma rebelião no dia sagrado das visitas e que essa briga de presos tenha levado à morte 7 detentos e um tanto considerável de feridos. Há um oitavo detento que precisamos confirmar se faleceu ou não.
Rebeliões
De qualquer modo, parece-me muito difícil não haver correlação entre os dois eventos. Quando fiz pesquisas no antigo IPPO, pelos idos de 1994-95, trabalhei com a ideia de que uma rebelião é produzida socialmente no contexto de violência prisional cotidiana e que brigas ou outros eventos que desencadeavam rebeliões eram apenas o estopim. Que não poderíamos confundir o estopim da rebelião com os motivos profundos da própria rebelião que estão incrustados no modo de funcionamento da violência prisional com suas práticas discricionárias e ilegais de punição extra-sentença. Uma tese inspirada diretamente em Michel Foucault. Dito isto, gostaria de tecer algumas observações mais gerais sobre o fenômeno do encarceramento contemporâneo. Em 1995, passei três meses frequentando uma cela do IPPOO com 11 presos. Só não podia dormir. Usava os dias de visita para fazer a pesquisa.
Quando leio notícia de 8 presos mortos em motim no presídio em Itaitinga, fico pensando sobre como retóricas de governo mascaram os fatos. O trabalho Revolta na sociedade dos cativos, sobre rebeliões dos presídios no CE, foi minha monografia de conclusão de curso de graduação. Lembro que rebelião, seguida de fuga, D. Aloísio Lorscheider como refém, foi liderada pelo Carioca, preso no IPPS. 15 de março de 1994. O sistema carcerário já era lotado. Já ocorria o problema de ter presos cumprindo a pena no IPPOO, o que não era permitido por lei. No cotidiano, havia muitas armas e drogas, e muitas punições extra-legais, tranca, tortura e também muito comércio ilegal. Na cela onde pesquisei, havia onze presos, doentes, um estuprador era seviciado diariamente, detento na cela com arma de fogo. O sistema carcerário estava cercado por escândalos de corrupção e desvio de dinheiro, muita gente ficou rica desviando recursos. As condições de trabalho de PMs horríveis, os da muralha principalmente, é considerada punição trabalhar na guarda do presídio.
Perda de controle
De lá para cá, houve investimentos para construção de novas unidades e as casas de custódia foram um avanço. Mas a massa carcerária explodiu. A situação é insustentável. O encarceramento em massa no ritmo em que está sendo produzido é um abismo. O governo perdeu o controle. Não apenas o governo do CE, especialistas em prisões no mundo generalizam isso. Apresentam os fatos como uma crise mundial. No artigo As contradições da "sociedade punitiva": o caso britânico, David Garland discute esses questões mais amplas. Para ele, A política penal de governo e suas retóricas baseiam-se no discurso da punitividade, uma nova política da crueldade. Funções corretivas da política penal foram deixadas de lado. Punir e neutralizar criminosos passaram a ser princípios do novo regime penal. Governos midiáticos estão explorando politicamente sentimentos de vingança e estimulando-os. Uma forma de despistar a falência do sistema. Desejos de um público temeroso são incitados e excitados para justificar abandono do caráter corretivo da pena privativa de liberdade. Discursos de "recuperação" do preso e de sua falência, pela evidência da reincidência, são usados para justificar desinvestimento público. Desinvestimento público na reintegração do egresso do sistema prisional em geral. Apenas uns poucos terão acesso a tais oportunidades. A maioria da massa carcerária está sendo tratada por governos como elementos incapazes e destinados à segregação prisional. Declarar que a massa carcerária é incapaz é uma estratégia para diminuir investimento em políticas de reinserção e reintegração do egresso.
Segregação punitiva
A segregação punitiva da massa carcerária ampla e numerosa faz da prisão uma cidade prisional ao lado da cidade-favela em oposição aos ricos. Os "bairros nobres" funcionando como uma "cidade de muros" (cf. Caldeira) segregam o pobre na favela ou na prisão. Essa onda punitiva contra os pobres (cf. Wacquant) é uma resposta penal e carcerária à demissão social do Estado contemporâneo. Por mais caro que seja manter e abrir novos presídios, isso é uma indústria, um mercado, gera divisas, lucros e contratos e fortunas. O montante do investimento público para integrar socialmente é gigantesco e, portanto, abandonado como perspectiva de Estado. A política pública torna-se uma ferramenta provisória, compensatória e fadada a falhar, pois não buscar reverter o quadro, apenas tocar o problema de lado ou empurrá-lo para frente. As falas do governador Cid Gomes, do Estado do Ceará, evidenciam isso. Sobre os eventos de morte de presos sob custódia do Estado, ele afirmou para o jornal O Povo que se tratava de "algo comum", ele referia-se à morte de 7 ou 8 presos sob custódia do estado, e que a briga de preso como "algo comum" teria motivado tudo isso. Cid diz que “o problema nessa área infelizmente vai existir. Quem está no presídio já tem uma conduta problemática e briga. Entre eles, infelizmente, é algo comum, apesar de todos os esforços que a gente tem feito pra tornar as casas de privação de liberdade espaços que ofereçam maior dignidade". O governante fala que o problema vai existir, como se fosse um fenômeno natural, e transfere culpa para "conduta problemática" do preso. Usa o "infelizmente" duas vezes para dizer que é natural, "algo comum" (8 mortos no presídio sob custódia do Estado? É algo comum?). Ainda emplaca "apesar de todos os esforços", ou seja, num momento grave de assassinato de presos sob custódia do Estado, ele se auto-elogia. Enfatiza que faz todos os esforços, o problema é o outro, não é o governo, o governo está envidando "todos os esforços". E finaliza que governo tem feito seu papel para dar dignidade aos presos. E a tortura denunciada? E greve de fome motivada por maus tratos?

3 comentários:

  1. O interessante é que conforme as reportagens sobre o motim na CPPL I uma briga de facções seria a causa das mortes. Lanço a pergunta onde esta a COSIPE a Inteligência (COINT) e a comissão de transferência (CATVAS) que colocou facções rivais no mesmo presídio, pavilhão e em ruas de frente com a outra? Analisando as ultimas reportagens sobre as unidades prisionais vamos encontra morte, greve de fome, tentativa de fuga, motim e tortura todas as semanas acontece algo em uma determinada Unidade. Realmente falta a imprensa noticiar a busca dos resultados, pois no que deu as reportagens onde o Juiz apurava casos de tortura na CPPL em Caucaia, afinal houve ou não tortura? O Sistema Penal no Ceará tem mais de 13 mil presos pegam uns 5 para trabalhar em obras do Governo e fazem festa, chamam imprensa e divulgam presos são inseridos no mercado de trabalho, ai morrem 08 internos e simplesmente dizem que é "algo comum." Na minha opinião o Sistema Penal Cearense encontrasse enfrentando uma crise onde perderam o controle e a direção.

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    1. http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1198463

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    2. Meu caro Edson Vieira, são centrais seus questionamentos. Perguntar pela responsabilização dos governos é exigir democratização das gestões. E a crise carcerária é mundial. Brasil oscila entre a quarta e a quinta maior população carcerária do mundo, atrás de EUA, China e Rússia, se não me falha a memória agora. Abraço.

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