segunda-feira, 25 de março de 2013

Onde estão as autoridades?

No dia 19 de março de 2013, o colega Vasco Furtado publicou artigo de opinião no jornal O Povo, intitulado Onde estão os criminologistas, com problematizações relativas à participação de especialistas em Segurança Pública junto aos debates públicos e, em especial, chamando a atenção para as constantes demandas geradas pelos veículos de comunicação e mídias em geral por "especialistas". O núcleo do argumento do artigo está ancorado na constatação de que no Brasil e no Ceará, aquilo que o autor classifica como Academia, responde ainda com timidez à participação nos debates sobre Segurança Pública, de um lado, e que há "vários grupos de pesquisa" cuja formação específica seria adequada ao perfil requerido pela mídia, como "especialista", inclusive nas academias de polícias.
Vasco, a meu ver, acerta o coração da questão, e concordo com o centro de ideias que ele mobiliza para construir a argumentação. Tenho algumas ponderações críticas a fazer, a fim de abrir o diálogo, que não se caracterizam pela lógica do contraditório, que é uma lógica bacharelesca pouco afeita ao modo de pensar e atuar da comunidade científica, que, por sua vez, trabalha com a lógica de buscas incessantes e provisórias de consensos/dissensos, assentadas em debates teóricos, mas, principalmente, nas evidências geradas pela pesquisa sistemática e metodologicamente rigorosa.
Quando Vasco afirma que nos falta realizar a valorização do campo de estudos da criminologia, e apresenta uma imagem complexa e sintética do que seria esse profissional, ele toca num ponto central. Para ele, o profissional que, legitimamente, teria as competências requeridas para ser intitulado de "especialista em Segurança Pública", seria aquele cuja "faceta multidisciplinar" permitisse uma abordagem do problema da Segurança Pública com "uma visão ampla que envolve fatores ligados à violência (sociologia/psicologia), à legislação (direito), à concentração de renda (economia), à ética (filosofia), à estrutura urbana (arquitetura e urbanismo) e ao tratamento da informação (informática)". Quando eu li esta definição de perfil, elaborada pelo colega, enviei uma mensagem para ele por Twitter, parabenizando-o pela assertividade, mas também alertando-o (para algo que ele sabe tão bem quanto eu) que a concepção de criminologia que prevalece na formação de policiais, juízes e demais profissionais oriundos de academias de polícia ou faculdades de direito, com raras exceções, é da criminologia clássica e da criminologia positivista.
Essa definição que Vasco nos apresenta é, infelizmente, muito rara de se encontrar nos ambientes profissionais da segurança pública. As novas criminologias são amplamente ignoradas nesses ambientes e também nas universidades. Nós, do LEV, por exemplo, não nos consideramos "especialistas em Segurança Pública", apesar de n vezes termos realizado intervenções nos debates, aceitando essa alcunha. Nós somos especialistas em Sociologia da Violência e dos Conflitos Sociais, que é a junção de duas sociologias específicas. Somos sociólogos e antropólogos. Estamos muito atentos à literatura da criminologia, principalmente, do modo como eminentes pesquisadores brasileiros a traduzem para nós, como Cláudio Beato, da UFMG, e Eduardo Paes Machado, da UFBA, dentre outros. Colegas cujos esforços vão no sentido de fazer o campo acadêmico refletir sobre a produção da nova criminologia no cenário internacional.
De modo que, estamos atualizados com algumas tendências dessa literatura, mas não é, em definitivo, o nosso forte enquanto equipe (um desafio a ser superado e para o qual estamos "correndo atrás"). Se houvesse mais mestrados e doutorados em criminologia e se profissionais de segurança pública, seguindo tendências de países onde forças policiais são altamente especializadas e produzem conhecimento em parceria com outros centros de pesquisa, como as universidades, haveria sim um grande avanço na formação da inteligência necessária à superação dos vazios e fragilidades que predominam quando se trata de desenvolver planos de ação integrados cujo planejamento estratégico esteja ancorado em bases de dados (qualitativos e quantitativos).

Ações em comum
Nós, do LEV, por exemplo, somos especializados em metodologias qualitativas, e não temos nenhuma aversão ou nenhum preconceito (apenas limitações) para com metodologias quantitativas, muito pelo contrário. A compreensão epistemológica de que o informacionalismo na produção do conhecimento exige a superação das dicotomias é o nosso norte. Mas não desenvolvemos competências em metodologias quantitativas e, por isso, buscamos sempre equipe e colegas que as desenvolveram para comporem de modo cooperativo formas de atuação mais elaborada. Profissionais como Vasco, no Ceará, e Ratton, em Pernambuco, ambos com elementos comuns de formação (para quem não sabe, Ratton é mentor do Pacto pela Vida e assessor do governo de Pernambuco, pesquisador associado do LEV). Mas também Jakson de Aquino, meu colega nas ciências sociais da UFC, a equipe da física da UFC que atua com José Soares de Andrade Júnior, entre outros colegas, podemos somar esforços na busca pela superação desse vazio ligado à formação de equipes quali-quanto, do ponto de vista metodológico, e da criminologia, no que tange ao caráter multidisciplinar da formação exigida segundo padrões internacionais para o "especialista em Segurança Pública". No LEV, Dr. Maurício Russo, da nossa equipe, é o nosso tradutor, quando precisamos dialogar em nossas pesquisas com estatísticas.
Nossos trabalhos são sempre de pesquisa qualitativa com uso pontual de estatísticas, diferentemente de trabalhos do colega Jakson, do LEPEM, que realiza investigações com métodos quantitativos, como Vasco, também. Enfim, estou querendo sinalizar, positivamente, com este texto francamente aberto, que temos sim competências em recursos humanos qualificados para formarmos em rede a superação proposta por Vasco. Isoladamente, dificilmente, conseguiremos dar os primeiros passos. Por isso, já temos agenda de trabalho marcada para breve com Vasco e outros colegas. Não pensem, sociedade cearense, que nós não estamos nos movimentando, é nossa tarefa, é nossa missão realizar isso. Cooperar é a chave de sucesso dessas aproximações. Trabalho cooperativo é algo que cientistas nas universidades fazem relativamente bem, é uma demanda requerida pelo padrão internacional de trabalho.
Se a mentalidade de colegas profissionais da Segurança Pública, ao se assumirem como pesquisadores, não fosse de encontro aos valores científicos, mas sim ao encontro daquilo que é competência do universo da pesquisa científica, no Brasil, capitaneado historicamente pelas universidades, os termos de um pacto de cooperação poderiam emergir para além das competições extra-científicas por prestígio social e político.

Ponderações
As ponderações críticas a que me referi estão centradas em dois pontos. Quando Vasco fala que há "vários grupos de pesquisa", não penso que sejam vários. Os trabalhos do núcleo da UFMG, liderado por Claudio Beato, está longe de ter grupos que lhes possam superar em competência para lidar com pesquisas criminológicas. O INCT Violência, Democracia e Segurança Cidadã, do qual o LEV-UFC faz parte, juntamente com NEV-USP, NECVU-UFRJ, Fiocruz, UFRGS e UnB, também vem dando sua contribuição, mas, certamente, centrada nas análises sociológicas do crime e da violência. A segunda ponderação é sobre o lugar da Academia, até onde é do meu conhecimento, nos países onde o modelo investigativo não é bacharelesco (Vasco chama de legalista), e envolve pesquisa criminológica, a interação interinstitucional com universidades é estratégica.
A "autonomia" de especialistas em Segurança Pública oriundos de academias policiais, sei que Vasco não defendeu isso em seu artigo, não pode ser estimulada, pois a Universidade é um lugar estratégico de investimento do Estado brasileiro para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia no país. Nesse ponto, sou abertamente corporativista, no bom sentido, se é que ainda há bom sentido nesse termo gasto, e defendo a Universidade protagonizando em relação às academias de polícia que, deixadas a sua própria sorte, tendem a reproduzir bacharelismo e visões obsoletas da criminologia lombrosiana. Vasco terminou o artigo dele, provocando: "com a palavra: os especialistas!". Foi por que gostei muito da provocação e por que me incomoda demais quando somos acionados como "especialistas em Segurança Pública", algo que não somos, que resolvi fazer esse texto para contribuir com o debate incitado pelo artigo de Vasco.
Ademais, ao ler o texto de Ricardo Moura, neste blog, que evidencia certo desprezo que profissionais da mídia veem dirigindo aos chamados "especialistas", percebi que o tema é central para a política acadêmica de especialistas que somos cujas formações podem contribuir para a formação desse novo especialista: o da Segurança Pública.
César Barreira, Vasco, Ricardo e colegas hão de concordar que estamos, enquanto pesquisadores, imbuídos da consciência profissional de qual pode ser nossa contribuição para a consolidação do controle democrático da violência no Ceará.
Com a palavra as autoridades!

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