sábado, 9 de março de 2013

Relato etnográfico de uma morte matada.

Descalço, ele passou correndo como um louco, a pistola no cós da bermuda de surfista. Saiu de um beco da favela, em um pulo arrojado de três metros de altura, cortou caminho pela beira da praia, subiu pelas pedras do paredão e adentrou em outro beco, no lado mais seguro para ele, perto de sua rua, de sua casa, de sua favela. Havia uma fronteira mágica entre os dois becos, segmentos de territórios em guerra. Muito sangue já havia sido derramado “na fronteira”. A esquina era ponto de encontro para as rodas de conversação dos jovens e também lugar de uma memória fúnebre que os jovens guardavam por meio de seus relatos sobre os nomes daqueles que haviam tombado sem vida naquela esquina e nas próximas. Ele vinha fugindo de uma terrível perseguição que já perdurava quase metade da semana. A ansiedade quanto ao desfecho desse evento se expressava coletivamente a partir dos rostos angustiados de amigos, colegas, parentes e moradores da comunidade. Os parentes do jovem que ele havia matado a tiros, durante uma cobrança de dívida de drogas, estavam armados até os dentes, querendo fuzilá-lo. Os policias militares estavam acompanhando de longe, omissos, olhavam de lado como se não o vissem passar, sem se envolver diretamente, com exceção do policial que era irmão do jovem assassinado por Marco Antônio e que estava injuriado com o caso, ele tinha jurado se vingar pela morte do irmão. A omissão dos colegas de farda era vigilante. Podiam intervir a qualquer momento se fosse para ajudar o colega em sua caçada. Havia rumores de que um matador da PM tinha sido convocado para ajudá-lo a derrubar o “vagabundo” que matara seu irmão. Os matadores da PM são muito temidos pelos jovens da favela quando se associam para perpetrar execuções como essa. As falas deles expressavam o fatalismo da situação. Era muito difícil escapar de uma caçada realizada por matadores da PM. Mais cedo ou mais tarde, o desfecho era previsível. O bichão ia ser derrubado. Quando Marco Antônio era adolescente, ele já fazia parte de uma das facções de jovens armados da favela. Realizava assaltos e também ele traficava drogas para sobreviver. Um dia, seu padrasto espancou mais uma vez sua mãe, o que provocava sentimentos irreconciliáveis para ele. Marco Antônio ficou possesso com a regularidade da violência doméstica contra a mãe, não aguentou e tirou a vida do companheiro dela, o agressor. Os policiais militares não gostavam dele, pois já havia trocado tiros com a polícia. Para os policiais, isso era uma afronta inaceitável, serem recebidos a bala. Havia aí um sentimento de falta de respeito, avaliação compartilhada também por diversos jovens armados que, em geral, buscavam fugir da polícia, mesmo que estivessem com poder de fogo para iniciar um tiroteio. Todavia, havia exceções, como sempre. O parceiro de Marco Antônio, por exemplo. Eumir, parceiro dele em missões (assaltos a mão armada), era conhecido como um temido matador de policiais. Ele havia tomado essa decisão, após um policial militar ter dado uma tapa na cara da mãe dele para que ela confessasse onde o vagabundo do filho dela estava. A tapa na cara de uma mãe num universo onde a imagem do masculino está centrada num modo de se imaginar cabra macho não era recomendável nem mesmo para a polícia. Tudo se tornava pessoal e íntimo que o ódio era destilado nessa modalidade de agressão à figura da mãe. Eumir atropelou o policial e passou a ser caçado por isso. Ainda derrubou seis policiais antes de ser preso. As notícias sobre as torturas sofridas por Eumir fazem parte da agenda das rodas de conversação. E as torturas não param. Mesmo no presídio, cumprindo pena em regime fechado, numa ala de segurança máxima, Eumir paga diariamente com seu corpo já quase minguado pela ousadia. Policiais fazem questão que a notícia corra. Deste modo, quando foi preso, Marco Antônio apanhou muito, apanhou por si e pelo comparsa matador de policiais. As torturas são co-extensivas nesse caso. Depois de três anos preso pela morte do padrasto, em menos de duas semanas, após sua soltura, ele cometeu novo assassinato e não pudemos mais conversar, a proximidade com ele tornou-se perigosa demais para mim e para todos. Apenas segui a etiqueta ampla de realizar o distanciamento de um bichão envolvido em uma treta muito grave. Era a atitude de seu círculo, com quem eu convivia há mais de um ano. Uma comissão de amigos foi até ele tentar demovê-lo da guerra em que se metera. Havia a alternativa da fuga. Ser acolhido por algum segmento de sua rede de parentesco em algum lugar do interior do Estado, clandestino, embrenhado nos matos, longe da Capital. A comissão voltou pessimista. Concluíram que não havia mais o que fazer. O destino de Marco Antônio estava traçado. Um mês antes da caçada, Marco Antônio estava lanchando numa bodega da favela, quando passaram dois policiais que o reconheceram de outros tempos, dos tempos dos assaltos e das trocas de tiros com a polícia, e da parceria com Eumir. Os policiais resolveram então dar as boas vindas para o “vagabundo da favela”. Deram-lhe umas surras para comemorar que o “vagabundo” estava de novo em liberdade e nas áreas. Foi assim que eu entendi melhor por que os jovens me diziam que a favela era extensão da prisão e vice-versa. “Aqui é a prisão”. No mesmo dia em que foi recepcionado violentamente pelos policiais, Marco Antônio, seja como forma de revide, ou como forma de expressar sua raiva, procurou um traficante local, velho conhecido dele, e ofereceu seus serviços armados. O traficante o contratou como cobrador de dívidas. Armado com uma pistola de uso exclusivo das forças armadas, Marco Antônio foi cumprir sua primeira missão de cobrança. Deu tudo errado, o jovem a ser cobrado não gostou da abordagem, discutiram no beco da favela e Marco Antônio o alvejou com vários tiros, matando-o a queima roupas. A vítima era como já relatei irmão de policiais. Foi o estopim para o início da caçada. Enquanto Marco Antônio me cumprimentava, ele no meio da rua, eu no primeiro andar do barraco da Matilde, onde estava conversando com uma turma de jovens do círculo dele, inclusive primos, fiquei receoso que houvesse mais um tiroteio e me deitei no chão do barraco. Os jovens que estavam comigo, discretamente, já tinham feito o mesmo, eu já podia segui-los quase simultaneamente nessa comunicação não-verbal e não-intencional diante dos perigos das guerras cotidianas. O sinal de perigo maior foi quando percebemos a aproximação da viatura da Ronda do Quarteirão, programa de policiamento comunitário da Polícia Militar do Ceará, a mesma equipe que havia torturado com açoites de fios de eletricidade o Raimundo, outro jovem armado, meu interlocutor em campo, para que ele confessasse um assalto fazia algumas semanas. Pensei comigo mesmo que a situação ia ficar complicada, um tiroteio se aproximava. Marco Antônio não arredou o pé da pequena calçada de onde me cumprimentara. Estava em franca atitude de desrespeito e de confronto com os policiais militares. Para a surpresa geral, os policiais militares do Ronda não fizeram a abordagem. Marco Antônio mostrou a pistola na cintura para os policiais e eles passaram em frente, foram chamar reforços. Os novatos do Ronda ficaram supostamente com medo do confronto. Agiram com prudência, pois um tiroteio na estreita rua ia colocar em risco muitos moradores. Eram três horas da tarde de domingo. O grupo de extermínio montado para apagar Marco Antônio estava à espreita, procurando em todos os becos pelo seu paradeiro. Mas Marco Antônio que nasceu e se criou na favela como bicho solto sabia se movimentar muito bem, ele conhecia o labirinto de becos como a palma da sua mão. Uma mobilização maior de policiais com outras equipes, como Raio e Cotam, fizeram o cerco ao Marco Antônio e deram apoio para a equipe do Programa Ronda do Quarteirão prendê-lo sem tiroteio. O medo e a prudência juntos garantiram uma prisão sem mortes, todavia o advogado do traficante conseguiu soltar Marco Antônio no dia seguinte, com muita rapidez. A pistola tinha sido apreendida, mas Marco Antônio pegou outra, também de uso exclusivo das forças armadas e voltou para a posição de caça ou caçador. Aquela movimentação estava deixando todo mundo cansado. Para os moradores, ficar observando e participando da movimentação do iminente extermínio era muito estressante. Cena várias vezes repetida. Os moradores estavam cansados disso. Um tiroteio pode ocorrer a qualquer hora e uma bala perdida acaba ferindo ou matando quem não tem nada a ver com a história, como sempre acontece, há anos. Muitos jovens estavam manifestando a ansiedade de que houvesse logo um desfecho. Um primo de Marco Antônio me revelou que a família já tinha perdido as esperanças e que queriam que tudo terminasse logo, ou seja, já davam como certa a morte de Marco Antônio antes mesmo de sua morte efetiva. Ele era um morto vivo. Era o que todo mundo dizia. Ele sabia disso e agia com total liberdade. Nunca vi um sujeito tão livre como ele pouco antes de morrer. Parecia sorrir da própria morte. Não pertencia mais a este mundo. Com poucos dias, o primo dele me telefona para avisar: “Derrubaram o Marco Antônio, com onze tiros”. Ele tinha 20 anos de idade. O velório foi pungente.

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