segunda-feira, 25 de março de 2013

Onde estão as autoridades?

No dia 19 de março de 2013, o colega Vasco Furtado publicou artigo de opinião no jornal O Povo, intitulado Onde estão os criminologistas, com problematizações relativas à participação de especialistas em Segurança Pública junto aos debates públicos e, em especial, chamando a atenção para as constantes demandas geradas pelos veículos de comunicação e mídias em geral por "especialistas". O núcleo do argumento do artigo está ancorado na constatação de que no Brasil e no Ceará, aquilo que o autor classifica como Academia, responde ainda com timidez à participação nos debates sobre Segurança Pública, de um lado, e que há "vários grupos de pesquisa" cuja formação específica seria adequada ao perfil requerido pela mídia, como "especialista", inclusive nas academias de polícias.
Vasco, a meu ver, acerta o coração da questão, e concordo com o centro de ideias que ele mobiliza para construir a argumentação. Tenho algumas ponderações críticas a fazer, a fim de abrir o diálogo, que não se caracterizam pela lógica do contraditório, que é uma lógica bacharelesca pouco afeita ao modo de pensar e atuar da comunidade científica, que, por sua vez, trabalha com a lógica de buscas incessantes e provisórias de consensos/dissensos, assentadas em debates teóricos, mas, principalmente, nas evidências geradas pela pesquisa sistemática e metodologicamente rigorosa.
Quando Vasco afirma que nos falta realizar a valorização do campo de estudos da criminologia, e apresenta uma imagem complexa e sintética do que seria esse profissional, ele toca num ponto central. Para ele, o profissional que, legitimamente, teria as competências requeridas para ser intitulado de "especialista em Segurança Pública", seria aquele cuja "faceta multidisciplinar" permitisse uma abordagem do problema da Segurança Pública com "uma visão ampla que envolve fatores ligados à violência (sociologia/psicologia), à legislação (direito), à concentração de renda (economia), à ética (filosofia), à estrutura urbana (arquitetura e urbanismo) e ao tratamento da informação (informática)". Quando eu li esta definição de perfil, elaborada pelo colega, enviei uma mensagem para ele por Twitter, parabenizando-o pela assertividade, mas também alertando-o (para algo que ele sabe tão bem quanto eu) que a concepção de criminologia que prevalece na formação de policiais, juízes e demais profissionais oriundos de academias de polícia ou faculdades de direito, com raras exceções, é da criminologia clássica e da criminologia positivista.
Essa definição que Vasco nos apresenta é, infelizmente, muito rara de se encontrar nos ambientes profissionais da segurança pública. As novas criminologias são amplamente ignoradas nesses ambientes e também nas universidades. Nós, do LEV, por exemplo, não nos consideramos "especialistas em Segurança Pública", apesar de n vezes termos realizado intervenções nos debates, aceitando essa alcunha. Nós somos especialistas em Sociologia da Violência e dos Conflitos Sociais, que é a junção de duas sociologias específicas. Somos sociólogos e antropólogos. Estamos muito atentos à literatura da criminologia, principalmente, do modo como eminentes pesquisadores brasileiros a traduzem para nós, como Cláudio Beato, da UFMG, e Eduardo Paes Machado, da UFBA, dentre outros. Colegas cujos esforços vão no sentido de fazer o campo acadêmico refletir sobre a produção da nova criminologia no cenário internacional.
De modo que, estamos atualizados com algumas tendências dessa literatura, mas não é, em definitivo, o nosso forte enquanto equipe (um desafio a ser superado e para o qual estamos "correndo atrás"). Se houvesse mais mestrados e doutorados em criminologia e se profissionais de segurança pública, seguindo tendências de países onde forças policiais são altamente especializadas e produzem conhecimento em parceria com outros centros de pesquisa, como as universidades, haveria sim um grande avanço na formação da inteligência necessária à superação dos vazios e fragilidades que predominam quando se trata de desenvolver planos de ação integrados cujo planejamento estratégico esteja ancorado em bases de dados (qualitativos e quantitativos).

Ações em comum
Nós, do LEV, por exemplo, somos especializados em metodologias qualitativas, e não temos nenhuma aversão ou nenhum preconceito (apenas limitações) para com metodologias quantitativas, muito pelo contrário. A compreensão epistemológica de que o informacionalismo na produção do conhecimento exige a superação das dicotomias é o nosso norte. Mas não desenvolvemos competências em metodologias quantitativas e, por isso, buscamos sempre equipe e colegas que as desenvolveram para comporem de modo cooperativo formas de atuação mais elaborada. Profissionais como Vasco, no Ceará, e Ratton, em Pernambuco, ambos com elementos comuns de formação (para quem não sabe, Ratton é mentor do Pacto pela Vida e assessor do governo de Pernambuco, pesquisador associado do LEV). Mas também Jakson de Aquino, meu colega nas ciências sociais da UFC, a equipe da física da UFC que atua com José Soares de Andrade Júnior, entre outros colegas, podemos somar esforços na busca pela superação desse vazio ligado à formação de equipes quali-quanto, do ponto de vista metodológico, e da criminologia, no que tange ao caráter multidisciplinar da formação exigida segundo padrões internacionais para o "especialista em Segurança Pública". No LEV, Dr. Maurício Russo, da nossa equipe, é o nosso tradutor, quando precisamos dialogar em nossas pesquisas com estatísticas.
Nossos trabalhos são sempre de pesquisa qualitativa com uso pontual de estatísticas, diferentemente de trabalhos do colega Jakson, do LEPEM, que realiza investigações com métodos quantitativos, como Vasco, também. Enfim, estou querendo sinalizar, positivamente, com este texto francamente aberto, que temos sim competências em recursos humanos qualificados para formarmos em rede a superação proposta por Vasco. Isoladamente, dificilmente, conseguiremos dar os primeiros passos. Por isso, já temos agenda de trabalho marcada para breve com Vasco e outros colegas. Não pensem, sociedade cearense, que nós não estamos nos movimentando, é nossa tarefa, é nossa missão realizar isso. Cooperar é a chave de sucesso dessas aproximações. Trabalho cooperativo é algo que cientistas nas universidades fazem relativamente bem, é uma demanda requerida pelo padrão internacional de trabalho.
Se a mentalidade de colegas profissionais da Segurança Pública, ao se assumirem como pesquisadores, não fosse de encontro aos valores científicos, mas sim ao encontro daquilo que é competência do universo da pesquisa científica, no Brasil, capitaneado historicamente pelas universidades, os termos de um pacto de cooperação poderiam emergir para além das competições extra-científicas por prestígio social e político.

Ponderações
As ponderações críticas a que me referi estão centradas em dois pontos. Quando Vasco fala que há "vários grupos de pesquisa", não penso que sejam vários. Os trabalhos do núcleo da UFMG, liderado por Claudio Beato, está longe de ter grupos que lhes possam superar em competência para lidar com pesquisas criminológicas. O INCT Violência, Democracia e Segurança Cidadã, do qual o LEV-UFC faz parte, juntamente com NEV-USP, NECVU-UFRJ, Fiocruz, UFRGS e UnB, também vem dando sua contribuição, mas, certamente, centrada nas análises sociológicas do crime e da violência. A segunda ponderação é sobre o lugar da Academia, até onde é do meu conhecimento, nos países onde o modelo investigativo não é bacharelesco (Vasco chama de legalista), e envolve pesquisa criminológica, a interação interinstitucional com universidades é estratégica.
A "autonomia" de especialistas em Segurança Pública oriundos de academias policiais, sei que Vasco não defendeu isso em seu artigo, não pode ser estimulada, pois a Universidade é um lugar estratégico de investimento do Estado brasileiro para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia no país. Nesse ponto, sou abertamente corporativista, no bom sentido, se é que ainda há bom sentido nesse termo gasto, e defendo a Universidade protagonizando em relação às academias de polícia que, deixadas a sua própria sorte, tendem a reproduzir bacharelismo e visões obsoletas da criminologia lombrosiana. Vasco terminou o artigo dele, provocando: "com a palavra: os especialistas!". Foi por que gostei muito da provocação e por que me incomoda demais quando somos acionados como "especialistas em Segurança Pública", algo que não somos, que resolvi fazer esse texto para contribuir com o debate incitado pelo artigo de Vasco.
Ademais, ao ler o texto de Ricardo Moura, neste blog, que evidencia certo desprezo que profissionais da mídia veem dirigindo aos chamados "especialistas", percebi que o tema é central para a política acadêmica de especialistas que somos cujas formações podem contribuir para a formação desse novo especialista: o da Segurança Pública.
César Barreira, Vasco, Ricardo e colegas hão de concordar que estamos, enquanto pesquisadores, imbuídos da consciência profissional de qual pode ser nossa contribuição para a consolidação do controle democrático da violência no Ceará.
Com a palavra as autoridades!

"Morte por tráfico é pontual", diz diretor da Guarda Municipal de Fortaleza

Um exemplo bastante ilustrativo de que não é possível estabelecer um consenso a ferro e fogo sobre a questão do crescimento nos números de assassinatos, por causa de sua complexidade, é a declaração do atual diretor da Guarda Municipal de Fortaleza, major PM Plauto de Lima, sobre a questão das drogas:

"A morte por tráfico é pontual", diz diretor da GMF

Ex-diretor do Instituto Penal Professor Olavo Oliveira (IPPOO) II e atual diretor da Guarda Municipal de Fortaleza (GMF), Plauto de Lima aposta nas blitze como fator de antecipação aos atos de violência habitualmente cometidos no bares e restaurantes e seus respectivos arredores.


A ideia não é prender, mas evitar que um crime ocorra. “Focamos no ordenamento da cidade. Porque desordem chama desordem e violência. Se o cara liga o som alto e vê que não dá em nada, o do lado vai achar que pode dar um murro em alguém ou até matar e também vai dar em nada”, explica o major.
Ele diz não acreditar na tese de os altos índices de homicídios de Fortaleza serem reflexo do tráfico de drogas - como prega a Secretaria Estadual de Segurança. “Morte por tráfico é pontual. Não é preponderante. Se fosse preponderante, Recife era para ter mais morte do que aqui; São Paulo era pra ter mais do que aqui; Rio de Janeiro era pra ter mais do que aqui... E eles estão diminuindo. Por quê?”, indaga, em linha similar à de especialistas consultados pelo O POVO em outras reportagens sobre violência urbana. 
Plauto de Lima defende a execução do Plano Municipal de Segurança Cidadã, em formulação na Sesec. Conforme ele, o documento lista ações cujo objetivo é antecipar o poder público aos crimes de baixo (furtos e roubos, por exemplo) e alto potencial violento (homicídios). (Bruno de Castro)
http://www.opovo.com.br/app/opovo/fortaleza/2013/03/21/noticiasjornalfortaleza,3026071/a-morte-por-trafico-e-pontual-diz-diretor-da-gmf.shtml

O risco do pensamento único na área da segurança pública

Gosto de deixar acumular os jornais que me chegam ao apartamento para depois dar uma olhada neles com uma certa distância temporal, na tentativa de encontrar algo que me passou despercebido, identificar padrões e acompanhar alguns fatos em seu desmembramento cronológico. Aproveitei o feriado para  me dedicar a essa tarefa e fui lendo e selecionando as edições do Diário do Nordeste.
Me detive em um exemplar que me chamou bastante atenção. Em uma matéria sobre drogas, no dia 18 de março, o jornalista Fernando Ribeiro escreve que o aumento da ocorrência de vários crimes está relacionada diretamente ao crescimento do tráfico de drogas. Para tanto, ele se baseia em depoimentos de uma juíza e de "autoridades ligadas ao assunto".
O que me causou estranheza, no entanto, foi a construção do parágrafo: "Autoridades ligadas ao assunto fecham questão quanto a isto, muito embora alguns 'especialistas' de plantão teimem em não querer admitir o fato, ou procurem outras explicações".
Não gosto do termo "especialista". Acho pedante assim como "doutor" e "mestre". Sou pesquisador, ou seja, alguém que está sempre em busca de algo. Desde que comecei a estudar a violência de forma mais sistemática, me incomodou a explicação fácil de que os assassinatos são causados por "acerto de contas",  pelo "tráfico de drogas" ou pelo "crack" como se esses fenômenos fossem seres autônomos e não estivessem inseridos em uma teia complexa de relações sociais. Há uma discussão sobre isso em minha dissertação, sobre o que essa justificativa mais esconde do que põe luz aos problemas.
Mesmo se o caso for um "acerto de contas", isso gera uma série de questionamentos: Quem devia a quem? Quem corria risco? Quem mandou matar? Quem matou? Quem traz a droga? Quem vende? Quem compra?  Quantos foram mortos pelo mesmo mandante? São perguntas importantes que nem sempre são respondidas, pois muitas vezes a ocorrência é finalizada de forma abreviada, haja vista ter sido "apenas" um "acerto de contas". A versão é tão repetida que muitas famílias de vítimas acabam naturalizando-a e deixam de se ir atrás de seus direitos no que se refere à investigação do crime.

Pluralidade
Mas mesmo que os especialistas sejam mesmo de plantão, eles não podem se manifestar de forma contrária às autoridades? Falou tá falado? Não se pode nem ao menos duvidar um pouquinho? Acho perigosa essa linha de pensamento, principalmente quando parte de um veículo de comunicação. Na imprensa, quanto maior pluralidade de fontes melhor. A compreensão do mundo não pode se dar apenas pela ótica de quem governa. O olhar divergente abre possibilidades, caminhos novos, amplia a discussão.
Quando o interlocutor é desqualificado, a possibilidade de diálogo se encerra. O que resta é apenas agressão pessoal. Violência simbólica. As autoridades ganham quando ouvem. Os "especialistas" de plantão.  Quando a conversa entre os dois é abruptamente silenciada quem perde é a população.
Encerro esse texto feliz. Satisfeito com as pequenas frestas no muro do consenso sobre o assunto. Se quem diverge da atual política de segurança pública merece tal registro é porque nossas reflexões circulam e ganham em repercussão.
E viva a democracia!

quarta-feira, 20 de março de 2013

Lei e ordem: uma leitura a partir de Ralf Dahrendorf – parte I


Ralf Dahrendorf é um sociólogo alemão cujas reflexões e análises sempre penderam para a defesa do liberalismo. Ele mesmo se considerava um “liberal não-reconstituído do século XVIII”. Convidado para uma série de conferências acadêmicas, o pensador organizou um roteiro de exposições intituladas “A Lei e a Ordem”, nas quais ele abordava questões relativas à violência, à anomia e ao contrato social. Ao ler a obra, notei que a discussão poderia ser de muita valia para quem se interessa por essas questões, justamente por apresentar argumentos teóricos que nós, por nossa formação, não costumamos lidar. Vou apresentar algumas delas neste texto, que não se pretende exaustivo, mas provocativo.
Para quem acompanha este blog, será possível notar pontos de divergência e de articulação com reflexões feitas em postagens anteriores. O que se tenta construir com esse esforço é um painel sobre crime, violência e segurança pública, não por acaso o título deste blog.

Anomia
Dahrendorf dá início a sua exposição apresentando um exemplo extremo de anomia: o fim do nazismo. Segundo ele, nos dias que sucederam à derrocada das forças de Hitler, Berlim se viu em um estado de caos social como nunca se vira. Os alemães eram mortos pelos soldados russos sem qualquer motivo. Ao mesmo tempo, os novos ocupantes do território alemão demonstravam sinais de generosidade e desprendimento que deixam a população perplexa. Berlim vivia um “momento supremo e horrível de absoluta falta de leis”.
Para o autor, o que aconteceu em Berlim é sintoma de um fenômeno mais amplo marcado por manifestações mais individuais e mais ocasionais de agressão social diferentemente do modelo anterior, cujo pano de fundo seria a luta de classes. “O declínio da eficácia da lei pode ser descrito como uma das contradições da modernidade (...) Queríamos uma sociedade de cidadãos autônomos e criamos uma sociedade de seres humanos amedrontados ou agressivos. Buscávamos Rousseau e encontramos Hobbes. No nível das forças sociais e políticas o conflito novo, e até agora pouco entendido, é resultado da tendência, da parte de uma grande classe majoritária, em se definir as pessoas fora de uma fronteira, para se proteger a própria posição” (pg.13).
O que estaria em jogo, segundo Dahrendorf, não é a redistribuição de recursos escassos dentro de limites aceitos, mas os conceitos centrais de lei e de ordem, ou seja, o próprio contrato social. O risco de se viver em uma sociedade regida pela anomia, acrescenta, é a proposição de uma solução baseada em um estado tirânico. “Uma vez surgido um problema hobbesiano de ordem, a solução também tende a ser hobbesiana”, afirma.
Vale lembrar que o autor está se referindo a uma situação de aumento de criminalidade vivida pelos países desenvolvidos, entre as décadas de 1950 e 1980, especialmente no que se refere a homicídios e crimes contra a propriedade. A perplexidade recai sobre o paralelismo entre a produção contínua de riqueza e a expansão de criminalidade. Guardadas as proporções, essa é a mesma pergunta que fazemos hoje no que tange ao processo de melhoria da renda e das condições sociais das camadas mais pobres da população que ocorreu conjuntamente com um acirramento dos crimes contra a vida, mais precisamente nas capitais da Região Nordeste e nos municípios do Interior.

Anomy versus Anomie
A explicação dada por Dahrendorf é a de que diversos fatores (desvios, desconhecimento, valor oculto e anomia) fazem com que atos contrários à norma não sejam punidos, gerando impunidade. A consequência direta seria a erosão da lei e da ordem.  A definição de anomia (anomy) adotada pelo sociólogo alemão difere da empregada por Durkheim (anomie). A anomy remonta a um conceito do século XVI que se relaciona a algo “portador de distúrbios, dúvidas e incertezas sobre tudo”. Para o autor, “a anomia é uma condição social que pode fazer brotar vários tipos de comportamento (...) A conexão entre anomia e crime não é causal. A anomia favorece uma condição básica, onde as taxas de crimes tendem a ser elevadas; e a análise do crime nos conduz a um melhor entendimento sobre a anomia” (pg. 27, grifo do autor).
Após fazer um breve levantamento das concepções teóricas sobre anomia de Durkheim, Merton e Giddens, Dahrendorf irá estabelecer a sua própria definição, a de que anomia é “uma condição social em que as normas reguladoras do comportamento das pessoas perderam sua validade. Uma garantia dessa validade consiste na força presente e clara de sanções. Onde prevalece a impunidade, a eficácia das normas está em perigo. Nesse sentido, a anomia descreve um estado de coisas em que as violações das normas não são punidas. Este é um estado de extrema incerteza, no qual ninguém sabe qual comportamento esperar do outro, sob determinadas situações” (pg. 28).
Além das sanções, a validade das normas baseia-se em “elos” culturais, chamados de ligaduras. “As normas são válidas se e quando elas forem tanto eficazes quanto morais, isto é, quando elas forem (julgadas) reais e (julgadas) corretas”. Por causa disso, há uma relação entre os conceitos de legalidade (eficácia positiva das normas) e legitimidade (coincidência entre eficácia e moralidade). A anomia, então, representa uma condição na qual “tanto a eficácia social quanto a moralidade cultural das normas tende a zero”. É preciso deixar claro que a anomia absoluta, assim como a utopia, é irreal e impraticável. Elas existem sempre como possibilidade, tendência e sinais.  
O aspecto mais fecundo dessa análise é a ampliação de nossa compreensão acerca da violência e da criminalidade, indo além do mero reflexo das condições econômicas ou de uma infinidade de atos individuais isolados. 

terça-feira, 19 de março de 2013

As metáforas da guerra e da cidadania nos estádios de futebol no Ceará.

Introdução 
O objetivo deste texto é propor reflexões de um ponto de vista sociológico sobre os significados da violência nos estádios de futebol à luz da análise dos conflitos sociais que se expressam no idioma midiático e espetacular dos eventos futebolísticos e no contexto de interação social dos públicos destes eventos. Como sociólogo, minha fala busca propor problematizações sobre esses fenômenos e oferecer ferramentas analíticas que possam contribuir para as bases conceituais de qualificação do debate público em torno do “combate à violência nos estádios de futebol e a questão das torcidas organizadas” que dá título ao desafio proposto para reflexão pelo Ministério Público do Estado do Ceará (onde fiz no dia 14 de janeiro de 2012 uma intervenção inicial que deu origem a esse texto que aqui reproduzo com pequenas modificações).
Portanto, mais do que soluções concretas, no sentido de sugerir medidas e encaminhamentos sobre o que a sociedade e o poder público devam fazer, nós, sociólogos, temos por missão específica desenvolver pesquisas teóricas e empíricas sobre os problemas sociais para que possam ser apreendidos como problemas sociológicos e, deste modo indireto, não-aplicado, intervir nos debates públicos com a intenção explícita de devolver na forma de provocações e argumentos críticos, as reflexões e interpretações analíticas, os questionamentos levantados pelos desafios da vida coletiva que nos instigam enquanto pesquisadores.
E para não frustrar completamente aqueles que esperam da Universidade contribuições mais incisivas e diretivas, gostaria de propor que os atores institucionais envolvidos no debate público possam discutir a possibilidade de que um seminário de pesquisa em parceria com a UFC e a UECE, entre outras instituições de ensino e pesquisa que queiram aderir à proposta, possa ser realizado para que os grupos de pesquisa e os pesquisadores individuais dessas instituições de produção de conhecimento possam apresentar os trabalhos que estão sendo desenvolvidos sobre as atividades esportivas na vida contemporânea.
Quem sabe um livro organizado sob os auspícios de reuniões de trabalho entre as várias equipes pudesse ser organizado para consolidar a discussão ou outros meios de divulgação das pesquisas já existentes sobre o assunto em pauta. Enquanto pesquisadores acadêmicos, propugnamos pela reafirmação do nosso compromisso, enquanto Universidade Federal do Ceará, principalmente, como representante do Laboratório de Estudos da Violência, de nos fazermos presentes para colaborar com essa construção pública de uma vida social pacífica, democrática e socialmente justa.

Propriedades estruturais do evento esportivo moderno 
Segundo interpretação de José Sérgio Leite Lopes (1995) acerca do pensamento do sociólogo Norbert Elias, portanto, colada à resenha do livro Em busca da excitação, a invenção moderna do esporte está centrada quatro características estruturais:
• “Pressuposição de um jogo em que haja uma relativa igualdade de chances entre os dois contendores.
• Prazer provocado por uma tensão agradável, somente possível se há esse arranjo de equidade entre os dois campos de combate ou excitante o combate simulado.
• O relaxamento final da tensão, com grandes chances de catarse, devido à vitória de um dos campos após um equilíbrio das forças em disputa.
• A limitação da violência física. "Neste sentido, o esporte é um fenômeno central para o processo de construção de uma vida social baseada no “autocontrole das emoções, dos afetos e dos sentimentos”, e, principalmente, da agressividade nos indivíduos que compõem as diversas classes sociais na vida moderna. O esporte em sua acepção moderna é um componente fundamental da tendência de contenção e eliminação da violência generalizada ou aleatória por meio do desenvolvimento de um autocontrole interiorizado sobre a agressividade de uns sobre os outros na vida social. O esporte moderno, portanto, nesse sentido, não estaria em linha de continuidade com a prática esportiva da antiguidade onde não havia uma “sensibilidade repulsiva em relação à violência” no esporte. Ao contrário, a maioria apreciava a violência no esporte. No nosso caso, no caso atual, existe uma maioria que expressa repulsa pela violência no esporte. Essa inversão é historicamente uma conquista das concepções modernas do que Elias chamava de processo de autocontrole da agressividade contra o outro e de instauração de uma vida social “parlamentar” ou cujos conflitos são organizados sob a forma parlamentar, da disputa retórica, verbal, discursiva ou ideológica, sem uso de violência física.

Violência ritual
Desse modo, o problema principal para nós não seria o da violência no esporte, mas o de como garantir a violência ritual pacificada das torcidas, portanto, como garantir a excitação que faz parte da competição esportiva moderna sem que o excesso de disciplina e de autocontrole que se exige dos indivíduos na vida rotineira não leve aos transbordamentos dos limites de ritualização da violência nos estádios. Dito de outro modo, a experiência de excitação coletiva nos estádios em torno de uma violência ritual pacificada nas relações entre as torcidas funciona como um contraponto da exigência rotineira de disciplina e de falta de excitação na vida ordinária dos indivíduos. A experiência do estádio envolve uma ritualização da transgressão da vida cotidiana e enfadonha, marca um momento extra-ordinário, um momento de excitação, por conseguinte.
Em geral, nos estádios, as torcidas estão exercitando relações jocosas entre si, relações de brincadeira que estimulam uma situação de excitamento para além das rotinas da vida ordinária. As torcidas são profundamente criativas, inventivas e provocativas do campo de valores que organiza a vida social. As torcidas desenvolvem “formas lúdicas de interação social mediadas pelo futebol, na forma de provocações, sátiras, pilhérias, desafios ou apostas, isto é, ‘jogos’ paralelos aos jogos de futebol propriamente ditos” (Gastaldo, 2010). As torcidas desenvolvem entre si formas de gozação mútua que desempenham funções morais na vida social, principalmente, da sociabilidade masculina. As torcidas são parceiras na gozação mútua. Mas como essas gozações, essa jocosidade, esse humor futebolístico se realiza em situações de conflitos sociais, há sempre um potencial disruptivo, de excesso, de quem não sabe brincar, ou não entendeu a brincadeira. O risco de ridicularização nessas situações está sempre presente (Gastaldo, 2010).
Brigas entre torcedores são antes a exceção do que a regra, apesar do potencial de briga existir no âmbito das relações jocosas entre os torcedores uma vez que: “é o desempenho de cada equipe de futebol defendida pelos parceiros e que o resultado dos jogos é imponderável, a cada rodada dos diferentes campeonatos as relações de força entre as equipes se alteram, resultando em uma variedade que poderia ser chamada (...) assimétrica alternada, embora a alternância esteja condicionada aos fatos do Jogo” (p.313). Em geral, as práticas esportivas envolvem na modernidade um aprendizado do combate físico e simbólico com poucos riscos de violência, o aprendizado do autocontrole e do fair-play (jogo limpo)(Lopes, p148). O futebol é um fenômeno de construção de identidades coletivas. Pertencer a uma torcida envolve a aquisição de uma fonte de identidade social. As equipes de futebol passam a funcionar com símbolos representativos de diversas comunidades das camadas trabalhadoras e também das camadas médias e médias altas.
Para os jovens das camadas populares, o pertencimento às torcidas é um fator de fortalecimento de identidades que passam por questões intergeracionais, as adesões aos times nas famílias, de gênero, sobre a concepção de masculinidade e também de classe, pela expressão dos segmentos estabelecidos e outsiders, ou excluídos, que são reordenados pelos enquadramentos morais das relações entre as torcidas. “o prazer da prática ou do espetáculo esportivo deve-se não ao descanso e ao relaxamento, proporcionados por uma situação de lazer (entendida no senso comum sociológico como complementar e antitética ao trabalho), mas à excitação e à tensão produzidas pelo enfrentamento individual ou coletivo de corpos, pela excitação agradável do simulacro dos enfrentamentos guerreiros violentos, porém com respeito à vida” (Lopes, p.155). O que se busca no espetáculo esportivo e a linguagem midiática é um fato de produção da significação dessa busca que não pode ser deixado de lado, pois a linguagem do confronto e da guerra da violência ritual pacificada está em função da construção da agenda midiática da competição entre os times realizada pela mídia.
Num contexto onde os indivíduos estão buscando excitação e extravasamento de emoções, quando ocorre desses segmentos que buscam uma vida que possa ser considerada significativa e excitante reelaboram nos enquadramentos morais das relações de força entre as torcidas os seus pertencimentos estabelecidos ou excluídos no conjunto das significações sociais mais amplos, alguns segmentos podem se tornar máquinas de guerra que metaforizam a exclusão da cidadania pelas atividades de quebra do jogo da violência ritual ou então pelo uso de códigos de percepção e avaliação dos limites da violência ritualmente permitida que difiram dos legalmente ou socialmente hegemônicos.

Risco
O sentido do risco é um importante fator de excitação e extravasamento de emoções que oferece ocasiões de ruptura com o rotineiro, com o ordinário e com o que há de vazio de sentido na vida cotidiana de exclusão e desigualdades. O esporte não está fora da sociedade. Se crimes contra a vida não são investigados, sendo relegados a uma posição de esquecimento generalizado, levando a um acúmulo de sofrimentos sociais sem precedentes, principalmente, entre as vítimas das camadas populares, por que haverão as torcidas de manter a civilidade nas trocas jocosas com seus oponentes quando os riscos de ridicularização são potencializados por múltiplas vitimizações e exclusões sociais no campo social mais geral? A violência no estádio quando quebra com o jogo não estaria metaforizando o estado de guerra permanente que se instaurou na vida civil? Com isso não queremos dizer verdades absolutas, mas apenas contribuir para a problematização das verdades sempre parciais e aproximativas que precisamos criar coletivamente sobre o problema da violência na vida social contemporânea e, em especial, na vida esportiva do nosso Estado e do nosso país.

A crise institucional da Segurança Pública no Ceará.

Quando a política de governo adota discursos e práticas cada vez mais punitivos e repressivos no campo da segurança pública, é sinal de que a ausência de autoridade somou-se ao controle inadequado da violência difusa, criminal e institucional. O endurecimento autoritário do discurso e da prática reflete o esvaziamento da legitimidade e da efetividade do controle profissional democrático. Este parece ser o caso do processo de desconstrução do campo da segurança pública por que passa o Estado do Ceará, sobretudo, nos últimos meses, no após greve da polícia. Afinal, não se pode deixar de observar que o Ceará vivenciou o réveillon do medo e instaurado o medo generalizado restou um persistente sentimento de insegurança associado ao descrédito crescente diante do aprumo da ação governamental.
Os recentes dados oficiais sobre crescimento da taxa de homicídios não nos fez ainda esquecer a tentativa do Governo do Ceará em apresentar algo distante dos fatos, o que levantou desconfiança e um desgaste institucional que já haviam sido produzidos pela forma com que autoridades da segurança pública do Estado, às vésperas do final do ano, negaram à sociedade o risco de greve, dando informação equivocada ao governador do Estado e à sociedade, produzindo assim o dia do medo que era evitável se tivesse ocorrido negociação.
A crise completa-se pela presença da PM na titularidade de uma pasta que exige uma visão diferente daquela que se caracteriza pelas funções de comando administrativo militar. Havia unanimidade histórica que a titularidade da pasta não poderia ficar nas mãos da PM. O pacto foi quebrado? Aliás, se a tendência mundial é reconhecer o caráter eminentemente civil da função policial, como é que, no Ceará, os segmentos considerados linha dura poderão continuar a apresentar como “solução” modelos superados da década de 1970 e isso sob o silêncio da sociedade e da categoria política do Estado?
Será que o evento da greve de policiais, como culminância da perda de controle da autoridade sobre o campo da segurança pública, não foi suficiente para evidenciar que há necessidade de novos rumos? A taxa de homicídios terá que crescer mais ainda junto com grupos de extermínio como num faroeste para haver mudanças de rumos no sentido da busca do controle democrático da violência e da criminalidade? Direito e civilização ainda fazem parte do horizonte de sentido da sociedade?

Este artigo foi publicado originalmente no Jornal O Povo, terça-feira, 30 de outubro de 2012. Estou a reproduzi-lo por aqui para que os leitores avaliem se caducou. Obviamente, eu defendo que não, penso que o argumento principal está mais atual do que nunca.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Crime, violência e desigualdade. Uma hipótese de pesquisa.

Segundo Göran Therborn, existem três maneiras de analisar a relação entre diferença e desigualdade. Diferenças podem ser horizontais. Não precisam necessariamente envolver ranking. Diferenças são também uma questão de gosto e de pensamento. De modo que entendimentos diferentes formam realidades plurais. Diferenças, ademais, não são necessariamente extinguíveis. Já as desigualdade são verticalizantes, produzem ranking, violam normais morais de igualdade humana, e geram situações injustas onde pessoas moralmente erradas são melhores recompensadas do que outras moralmente justas. Enfim, "desilguadades são diferenças hierárquicas, evitáveis e moralmente injustificadas".

Desigualdades
Há três tipos de desigualdade. O primeiro tipo é a desigualdade vital que influencia questões de saúde e morte. Envolve fatores que incidem conjuntamente sobre expectativas de vida e taxas de sobrevivência e óbito. O segundo tipo é a desigualdade existencial. São fatores que atingem as pessoas e restringem a liberdade de ação das pessoas. A desigualdade desse tipo, a existencial, nega direitos, anula processos de reconhecimento, gera falta de respeito e exclusão das esferas públicas. O terceiro tipo de desigualdade é o tipo mais conhecido, a desigualdade material. É a desigualdade de recursos, tanto de oportunidades como de resultados, e o exemplo clássico é a distribuição de renda. Mas, além de entender que desigualdades se distribuem analiticamente em tais categorias (envolvendo relação com diferenças e tipos de desigualdades) as desigualdades são socialmente e culturalmente produzidas, são históricas.

Formas de produção de desigualdades
E há quatro formas, segundo o autor, de produzir desigualdade na vida sociocultural e histórica dos humanos. São quatro mecanismos sociológicos de produção de desigualdades: distanciamento, exclusão, hierarquia e exploração. O distanciamento estabelece relações entre os que correm na frente e os que ficam para trás. A exclusão já se define por uma barreira socialmente interposta a certas categorias de pessoas para que estas não disputem com outras categorias a vida socialmente considerada significativa ou "boa vida". As hierarquias são escalonamentos de posições, funções e cargos, geram posições superiores relativamente às posições inferiores que, por sua vez, também são relativas. E, por fim, há a exploração, que envolve o estabelecimento de submissões para os pobres, os trabalhadores, em oposição aos ricos, os proprietários. Na realidade social, esses fatores, tipos e mecanismos atuam embaralhados, são distinguíveis apenas para fins analíticos. Há, por conseguinte, reforços circulares entre esses mecanismos. Rebatimentos. Reverberações.
Com esta síntese das ideias principais do sociólogo Therborn, pretendo levantar um questionamento que para nós, pesquisadores do LEV, nos nossos debates coletivos internos, parece-nos central. A pergunta seria: como relacionar violência, crime e desigualdade? Se temos reservas consideráveis quanto ao tipo de reducionismo que faz uma ligação direta e causal entre pobreza e crime ou entre pobreza e violência, sempre nossas pesquisas apontaram para a problematização crítica dessas correlações feitas por certos segmentos da opinião pública, isso não quer dizer que não vejamos uma relação entre desigualdade e violência ou desigualdade e crime. A distinção analítica entre o fenômeno da pobreza e o da desigualdade é fundamental neste ponto. A desigualdade está ligada à distância social entre ricos e pobres. Ao espaço de posições desiguais quanto aos acúmulos de capital simbólico ou social que dizem respeito a cada uma das posições sociais que geram distinções ou indistinções, e aqui nossa grande inspiração é Pierre Bourdieu. São nas formas das relações sociais que giram em torno de questões de aproximação e de distanciamento que se encontram as formas de ação da desigualdade.
A formação de áreas de prosperidade com alto grau de informalização que atuam como mecanismos de segregação de outras áreas, relações de tipo estabelecidos e outsiders, como estudadas por Norbert Elias, parecem dar o tom da busca analítica que estamos aqui sugerindo como fundamental. É baseando-se nessa pista teórica que podemos problematizar o fato de que no país da suposta "nova classe média", ideia de baixíssima confiabilidade sociológica entre cientistas sociais no Brasil, há dinâmicas criminais e processos violentos letais cada vez mais acirrados em torno da luta pelo poder social e pelo sentido das desigualdades, o que nos leva ao paradoxo de haver diminuição relativa de segmentos submetidos à pobreza ao passo que a inclusão marginal de indivíduos no mercado precário do capitalismo contemporâneo gera fenômenos de adesão à violência letal e à violência criminal num sentido que atordoa a todos, como se fosse inexplicável essa relação paradoxal entre aumento da violência e diminuição da pobreza.
A hipótese que estamos querendo discutir, sob influência das ideias que o líder de nosso grupo de pesquisa, César Barreira, está propondo, certamente numa versão diferente da que eu mesmo elaboro neste texto, pois há diferenças e pluralidades de pensamento na nossa equipe, que seria: não há como descartar, como hipótese principal, a análise das correlações entre crime, violência e desigualdades, se quisermos entender o que se passa na sociedade brasileira pós-ditadura que corresponde a uma explosão de eventos criminais, e, principalmente, de taxas de homicídios, só recentemente revertidas no sudeste e em Pernambuco, mas que divergem do que está acontecendo no resto do país, em larga medida.
O que está acontecendo que estados como Ceará perderam o controle sobre o aumento das mortes matadas por armas de fogo? É esse tipo de pesquisa que gostaríamos de propor daqui por diante.

domingo, 17 de março de 2013

Modelos de policiamento: o uso político dos grupos especiais.

Não tenho nada contra a polícia. Muito menos contra o Raio e outras equipes que podem ser classificadas como grupos especiais, sejam da polícia civil ou militar, o melhor é que fossem uma única polícia. Aliás, só me posiciono contra esses grupos quando promovem ações ilegais, ações que se realizam ao arrepio da lei, ações violentas extra-jurídicas e contrárias ao Estado Democrático de Direito. No mais, sei distinguir muito bem entre a crítica à institucionalidade desses grupos (ao governo e aos comandantes instituídos por ele) da crítica às pessoas enquanto profissionais que arriscam suas vidas no cotidiano violento da cidade e do Estado do Ceará. Dito isto, gostaria de lançar a seguinte questão: é possível alicerçar a ideia geral e ampla de política de segurança pública na atuação exemplar e produtiva de grupos especiais? Essa questão poderia inclusive ser desdobrada em outra: é possível adotar o modelo da PM como referência geral da pasta da segurança pública? As duas perguntas, como o leitor atento pode perceber, são retóricas. Já adianto que a resposta que lhes dou é um resoluto não (até que me convençam do contrário).

Abordagens
Os membros do Raio estão sendo superexplorados no que diz respeito à questão da produtividade de apreensão de armas nas ruas (o que fazem muito bem e com excelência), mas o que está sendo mais explorada ainda, além das pessoas, é a imagem do Raio. Já observei abordagens do Raio, do Cotam e do FTA que foram exemplares. Policiais seguindo todos os procedimentos e protocolos profissionais no respeito à legalidade e à cidadania. Dizer que estes grupos, incluindo o infelizmente ainda temido GATE, não dão conta de protocolos e procedimentos profissionais de acordo com a lei seria uma inverdade, ao contrário, sabem exatamente como agir de modo regulamentar. Quando alguns membros desses grupos atuam ao arrepio da lei, fazem-no conscientes, mas, principalmente, autorizados por instâncias superiores. Na polícia, seja militar ou civil, os policiais sabem disso melhor do que ninguém, é muitíssimo arriscado agir individualmente, por conta própria, sem respaldo de instâncias superiores. O policial, por exemplo, pode ser afamado por ser matador, mas se estiver numa equipe onde não tem autorização para matar como um mero pistoleiro de farda, ele irá pensar duas vezes antes de agir ou então mexer os pauzinhos e pedir transferência de equipe, o mesmo vale para policiais corruptos. Nem sempre o policial violento (matador ou torturador) é corrupto. Há policiais duros que não aceitam corrupção. Como há policiais com discurso altamente em conformidade com "democracia e direitos humanos" que são corruptos. Modernos e corruptos. Os antigos que são de linha dura mas não são corruptos não gostam nada disso.

Política
É um conflito interno das próprias corporações. Principalmente, da Polícia Militar, a qual estou me referindo nessas últimas linhas. Por isso tudo, considero uma injustiça com o Raio que essa equipe que é tão importante e dedicada e sofrida e escravizada (sem convívio familiar, sem lazer, praticamente uns escravos militares modernos) esteja sendo cobrada no sentido de se tornar a grande panaceia da segurança pública. Essa visão é estreita. Repousa em modo reducionista de pensar e agrava a saúde profissional dos próprios integrantes do Raio que estão tendo que dar conta de tudo. Das saidinhas bancárias aos assaltantes à mão armada, passando pela vigilância dos conflitos armados entre grupos de assaltantes e também grupos de traficantes por toda parte, sem falar nos sequestros. É uma política insustentável manter o Raio como o único pilar da segurança pública, é uma imagem falsa. Segurança pública não se resume à polícia especial. O Raio sabe disso. Este texto é de opinião, como já se deu para notar, não busca deter a verdade absoluta, apenas instigar ao debate. Meu orientando de doutorado e parceiro neste blog, Ricardo Moura, tem com certeza muito mais a dizer sobre isso e com muito mais dados empíricos, pois está realizando pesquisas centradas em questões aqui abordadas de um modo opinativo, mas que não deixa de estar ancorado em mais de dez anos de pesquisa com policiais no Ceará, diga-se de passagem.

sábado, 16 de março de 2013

As mortes matadas por arma de fogo em Fortaleza.

Foram 346 homicídios por arma de fogo em 2000 e 1.159 em 2010 em Fortaleza De 346 no ano de 2000 para 1159 em 2010. Variação de 235% (MV2013). Apenas São Luís (267,%) e Maceió (249,6%), entre as capitais brasileiras, tiveram variação maior do que a de Fortaleza em dez anos. Recife (Rio e Sampa também) obteve considerável diminuição de mortes matadas por armas de fogo. Tendência de queda em dez anos (-41,4%). O que nos impede em Fortaleza de aprendermos com lição de Recife? Que tamanha desinteligência é a nossa nesse ponto. Taxa de óbito (em 100 mil) em Fortaleza passou de 16,2 em 2000 para 47,3 em 2010. Variação de 192,5%. Em Recife, variação negativa (-45,8%). 2000-2010: Fortaleza praticamente triplicou taxa de óbitos por armas de fogo. Culpa das drogas? Recife tem menos droga do que aqui? Certeza disso? A taxa de óbitos entre os jovens é quatro vezes maior do que entre não-jovens. O que dizer de raça/etnia? Imaginou? Como explicar que no CE "sem negros", segundo ideologia oficial, jovens negros morrem quase três vezes mais do que brancos? A taxa média de mortes por armas de fogo no Brasil é mais do que o dobro do que resulta do conflito Israel-Palestina. Em números absolutos, total de mortes por arma de fogo na guerra do Iraque é metade do BR no mesmo período. Mais provável sobreviver lá. Quando autoridades da Segurança Pública dizem que baixar homicídios é utopia, fico pensando em vários países do mundo que têm taxa zero. E não são necessariamente países mais ricos do que o Brasil. Não baixar a taxa de homicídios é incompetência. Dizer que é utopia é cinismo. Na Argentina em crise socioeconômica grave, a taxa de homicídios por arma de fogo (em 100 mil) é 2,1, no BR da "nova classe média" é 19,3. Governo diz que culpa da taxa de homicídio por armas de fogo crescente no CE é de drogas. Rio, SP e Recife reduziram consumindo drogas (muitas, infelizmente). A culpa é do crack? E os mercados ilícitos de armas (no atacado e no varejo) a todo vapor com alta rentabilidade é culpa de quem? Do crack? Não há como negar haver correlação entre "acertos de contas" no tráfico de crack e mortes por armas de fogo, mas há uma ideologia atuando aí. Porém, ideologia governamental e midiática do "acerto de contas" faz do crack o despiste que esconde um profundo abandono da área da Segurança Pública. São algumas pistas para debate.

sexta-feira, 15 de março de 2013

A crise do controle democrático da violência.

Omissão, incompetência e desrespeito à lei por parte do Estado são fatores criminógenos decisivos. Estado produz homicídios em série. Só é defensável propugnar por rigor punitivo, se a pugna tiver como principal alvo o Estado e os governantes desrespeitadores da lei. Exigir punição de pobres sem punir sociedade por negar direitos constitucionais aos pobres é profundamente desonesto - para dizer o mínimo. O crime é socialmente produzido. Não existe relação direta entre crime e pobreza. Pobreza não pode ser tida como "causa" do crime. Todo e qualquer cidadão é potencialmente criminoso, uma vez que nunca haverá conformidade absoluta entre normas e comportamento efetivo. Quem exige punição para criminosos "pobres da favela" com discurso raivoso, esconde sua própria conduta criminal. Omite sua própria culpa. O crime não é uma atributo da favela ou dos pobres. Há muitos crimes da sociedade e do Estado, e a favela é a prova de um crime coletivo. Ódio racista e virulento de "elites" contra "vagabundos da favela" está em função de profundo medo de ter a própria culpa desvelada e punida. A favela no Brasil é a prova do crime que sociedade, governantes e Estado cometeram e cometem ao gerar exclusão e segregação de co-cidadãos. No Brasil, quem vitupera contra direitos dos outros, costuma ser exímio e arrojado mobilizador de recursos na defesa de seus próprios direitos. Sujeito pede punição rigorosamente exemplar para pobres, mas usa prestígio social para garantir a própria impunidade e a dos seus. A correlação a ser feita na análise da relação de poder e dominação que aí se descortina é entre crime e desigualdade, não entre crime e pobreza. Pois pobreza e desigualdade são fenômenos vizinhos mas sociologicamente distintos. Não houve, não há e jamais haverá sociedade humana que tenha conformidade absoluta entre código e prática. É nesse sentido que Durkheim afirmava que o crime é um fenômeno social normal. Faz parte do funcionamento da sociedade humana. Mas há situações onde a sociedade perde o controle sobre a dinâmica criminal, são casos que Durkheim chamaria de anômicos. A crise do controle democrático da violência é uma função da crise da crença na sociedade democrática e vice-versa, de modo circular. Acúmulo de violência letal armada é função da crise da institucionalidade de recursos pacíficos estatais e comunitários de mediação social.

Quando a máscara adulta faz falta.

Hannah Arendt falava que a banalidade do mal está ligada à irreflexão, tecnocratas detestam pensamento crítico e reflexivo. São imoderados. A função da crítica é desnaturalizar o que parece ser natural - e que é, ao contrário, algo histórico e fruto de decisão humana. Tecnocratas que gostam do poder não gostam de ética e política. Estas ideias limitam a vontade de poder do governante. A irreflexão mascara. É inaceitável do ponto de vista ético, político e jurídico que governante negue responsabilidade por aquilo que é objeto de sua competência. No caso das denúncias de tortura, da greve de fome e da morte de presos sob custódia do Estado do CE, incompetência é uma falta com a ética. A falta de resposta está ligada à reatividade. O contrário da reatividade é a responsividade, de onde brota a responsabilidade. "In our struggle for responsibility, we fight against someone who is masked. The mask of the adult is called 'experience' "(Benjamin). Mas nem sempre os adultos tiram a máscara para se apresentarem em público. Quando isso acontece, todos sentem que há algo destoante. É preciso vestir a máscara do adulto para adentrar no universo da experiência. Precisamos de dirigentes, pelo menos, afeitos ao uso desta máscara.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Escola aberta, viva, crítica e reflexiva: a superação da violência nas escolas e da escola.

A questão da violência escolar diz respeito ao contexto mais amplo no qual as escolas, a vizinhança e outras instituições estão inseridas. E envolve uma responsabilização do campo de segurança pública, principalmente, no que tange a um controle mais acirrado da comercialização ilegal de armas. Esse ponto precisa ter mais atenção, uma vez que a letalidade é alta, resultado dos conflitos entre traficantes e dos traficantes com a polícia. Sem dúvida, é um risco potencializado pela convergência entre o fenômeno das armas e o do tráfico de drogas. Uma coisa não está dissociada da outra. Seria importante ter uma atenção bem maior para a questão das armas de fogo para não permitir o armamento tanto dos traficantes quanto também da população que usa a arma, em geral, para resolver seus conflitos. O ambiente social circundante, onde a escola se localiza, está mergulhado nesse profundo conflito armado incrustado na vida cotidiana dos bairros. Sobre a hipótese de que os líderes do tráfico estão cada vez mais jovens, precisamos perceber que existe uma carreira criminal. Houve uma carreira desde aquele jovem que está ainda no início. Até ele chegar a outro momento, em que já se tornou um traficante reconhecido e fazendo uso de armas e tendo uma equipe de trabalho, houve uma carreira em desenvolvimento, houve, portanto, uma realização na carreira. As políticas públicas estão sendo ineficientes em permitir essas carreiras, que elas tenham continuidade, se desenvolvam e se transformem num modelo de referência para a adolescência. O traficante se torna um modelo de sucesso ilegal, no sentido de realização daquelas demanda de consumo, que são demandas de afirmação de identidade. Isso vai reforçando cada vez mais um glamour, certa mitificação desse lugar de um traficante que passa a adquirir bens de consumo. E esse processo de aquisição ilegal de bens para consumo é um mecanismo sociológico poderoso de projeção de imagens de si e do outro. Não apenas as guerras entre traficantes, mas os modelos de sucesso imaginados e transmitidos nos bairros onde traficantes atuam influenciam fortemente o funcionamento do espaço escolar, uma vez que os fluxos das pessoas e das redes sociais da comunidade e do bairro está inseridos ou perpassam de algum modo o mundo da escola. Neste sentido, uma questão pouco discutida é a falência da escola. A despeito do bairro e da comunidade influenciar o espaço escolar é preciso ter prudência diante da tendência em atribuir "culpa" aos jovens e jogar o problema da violência na conduta dos jovens, ou de suas famílias e nos contextos da vizinhança onde os jovens moram. Há uma dialética aí que não aceita reducionismos para um lado ou para outro. Há uma questão do modelo da escola, por exemplo, que é o modelo hegemônico da escola que é extremamente desinteressante. A escola hoje tem o modelo que não oferece oportunidades de significação e de sentido. Oferece poucos fontes de significação para a constituição do sujeito enquanto sujeito de si. Exceto em locais com modelo mais sedutor, construtivista, nova escola, etc., onde haja impacto grande na vida das crianças e adolescentes, a análise não se aplica da mesma maneira. Mas onde as escolas são pedagogicamente muito precárias, elas se tornam quase uma instituição total. Acabam se aproximando do modelo da prisão, e as escolas voltadas para as comunidades mais vulneráveis está a todo momento lembrando que os jovens da comunidade ou estão na prisão, ou mortos ou na escola que é lida socialmente como um modo de evitar a prisão, uma promessa da escola, mas que de fato gera uma segregação entre jovens com mais oportunidades locais e outros excluídos dentro da exclusão. Há casos de escolas públicas que funcionam como enclaves para reter com exclusividade crianças, adolescentes e jovens do bairro que sejam aqueles e aquelas que possuem redes familiares fortes com mais recursos simbólicos, materiais e imaginários para a sua inserção nos mercados sociais. O simbolismo da escola no bairro é demarcado pela questão da segurança da própria escola diante do bairro. As escolas têm espaços gradeados e essa não é a melhor solução. Se há grades é porque não há esforço da comunidade com a própria escola e não há interação com o entorno. Política pública teria de ser pensada de maneira a se criar polos de reflexão e cidadania nos contextos locais, para que a escola pudesse funcionar não com grades, mas com participação das famílias locais. A escola se fechar é a solução mais simples, reducionista e simplifica o fato da violência. Aliás, a escola fechada é uma escola que está atuando como ferramenta de segregação e o ódio à escola tende a aumentar entre os segmentos que foram segregados. Muitos pequenos assaltos realizados por jovens contra público da escola são realizados por crianças, adolescentes e jovens que foram em algum momento segregados pela escola que atacam. Existem casos diretos, onde o jovem que foi recusado na escola por ser da favela se dirige como assaltante contra os estudantes da escola que o recusou. Está violento porque a escola se fechou para ele (em geral se trata de rapazes). Onde há educadores atuando abertamente na comunidade, com a proposta pedagógica dialógica de construção do saber e do conhecimento, a escola funciona. O investimento de tal ordem seria enorme. Seria necessário investir em políticas públicas que possam trazer esse tipo de transformação. Precisa ser implementado um projeto pedagógico orientado para realização da abertura com participação popular. Existem casos pelo mundo inteiro. Mas abrir por abrir, sem haver investimento em política pedagógica não apresentaria o resultado de transformação. É preciso que essa abertura ocorra de maneira responsável, participativa e cidadã. Abrir por abrir iria confirmar o caos. Confirmaria a visão conservantista que a solução é colocar mais polícia. Situação que desmoraliza a política pedagógica ou mascara a falta de empenho em realizá-la. As famílias das comunidades sabem de alguma maneira que os melhores profissionais, os mais preparados, experientes e qualificados estão lotados nas melhores escolas particulares e públicas (as raras que são de alto nível), quando deveriam estar nas periferias fazendo de escolas postas em zonas de abandono, escolas de transformação da relação cidade, bairro e cidadania. Mas, ao contrário, a menor qualificação fica nas escolas mais precárias. Inclusive, estar numa escola num lugar considerado perigoso é tido como uma punição. Imaginem o efeito simbólico, a atitude do professor que já vai para o lugar se sentindo punido? Como é que esse profissional vai se motivar? Os alunos percebem que o professor está ali à força, sem desejo próprio, sentindo-se mortificado. Quando chega uma política social, ela precisa dar resultados, as famílias precisam fazer acompanhamento disso, apropriar-se da política social, o que alguns chamam de empoderamento, mas eu prefiro dizer agenciamento. Quase nunca políticas chegam nas crianças e adolescentes invisíveis. Tem algo de muito perverso hoje acontecendo nas periferias. Crianças e adolescentes em situação mais vulnerável dificilmente são atendidos. Isso é muito contraditório. É uma ação de inclusão dentro da exclusão. É uma falsa inclusão, pois está gerando segregação dos mais vulneráveis. Nós não podemos seguir o caminho mais fácil que é de abdicar do desafio coletivo de manter a escola no sentido de lugar de educação, que significa transformação pelo saber e pela construção coletiva da emancipação intelectual, agentiva, etc. da cada um e cada uma.

terça-feira, 12 de março de 2013

Sobre torturas, greve de fome e mortes violentas nos presídios cearenses.

No dia 21 de fevereiro de 2013, o jornal O Povo noticiou, em reportagem assinada por Thiago Paiva, que "Presos fazem greve de fome por melhorias nas CPPLs". De um lado, a Sejus explica a greve de fome como uma reação ao endurecimento de vistorias, apreensões de celulares e descobertas de planos de fuga. De outro, a coordenação da Pastoral Carcerária fala de crimes de tortura no sistema. Quem divulgou a lista de reivindicações foi a própria Sejus, segundo a reportagem. De modo que não temos como saber se a lista é a lista de prioridades das reivindicações dos presos ou apenas alguns de seus componentes apresentados de modo descontextualizados, o que dá a entender que os presos estão pedindo regalias, como aparelhos de televisão e sanduicheiras nas celas.
A voz dos presos não aparece em nenhum momento, o jornalista Thiago Paiva me esclareceu em comunicação pessoal que não teve acesso aos presos, a situação não permitia. Para o repórter o Pe. Marco Passerini afirmou que: “São questões antigas, problemas de tortura que se arrastam há anos. O problema é que as denúncias são feitas pelos presos e seus familiares, e quase sempre a informação deles não tem valor. É sempre a voz deles contra a da Secretaria”. Sejus diante da denúncia do padre, afirma que desconhece torturas como motivação da greve de fome. Sejus reafirma que motivação seria rigor de vistorias.
A meu ver, é imprescindível que consigamos entrevistar os líderes dessa greve de fome para que eles possam nos dizer com suas próprias palavras quais foram suas motivações. E se a lista que Sejus apresentou como sendo as reivindicações deles é confirmada como sendo a prioridade do movimento de greve de fome, que, diga-se de passagem, é um recurso extremo adotado em situações drásticas por presos no mundo todo, uma greve de fome de presos não pode passar desapercebida. Quais autoridades apuraram os fatos? Quem coletou depoimentos dos líderes da greve de fome para checar a veracidade das versões da Sejus e da Pastoral Carcerária? São desdobramentos que temos que fazer com esforços convergentes de pesquisa para alcançarmos mais dados sobre o que está se passando de fato nos presídios. É interessante notar que o repórter Thiago Paiva captou com seu texto a contradição básica que há entre o que afirma a Pastoral Carcerária, falando em nome dos presos em greve de fome, e o que afirma a assessoria de imprensa da Sejus.
Aliás, um tema sério como esse precisaria ser respondido por alguém mais do que a assessoria de imprensa. Greve de fome no sistema prisional motivada por denúncias de crimes de tortura, já tendo casos de tortura que foram apurados e portanto evidenciam a persistência da prática, isso tinha que ser respondido pela titular da pasta da Sejus ou pelo governador. Ninguém cobrou isso na sociedade e na imprensa, que eu saiba. No dia 22 de fevereiro, outra matéria do O Povo noticia o fim da greve de fome. "Greve de fome chega a 72h na CPPL I", assinada pela Redação O Povo on line. O que me impressiona nesses eventos é que 20 dias depois de uma greve de fome no CPPL I explode uma rebelião no dia sagrado das visitas e que essa briga de presos tenha levado à morte 7 detentos e um tanto considerável de feridos. Há um oitavo detento que precisamos confirmar se faleceu ou não.
Rebeliões
De qualquer modo, parece-me muito difícil não haver correlação entre os dois eventos. Quando fiz pesquisas no antigo IPPO, pelos idos de 1994-95, trabalhei com a ideia de que uma rebelião é produzida socialmente no contexto de violência prisional cotidiana e que brigas ou outros eventos que desencadeavam rebeliões eram apenas o estopim. Que não poderíamos confundir o estopim da rebelião com os motivos profundos da própria rebelião que estão incrustados no modo de funcionamento da violência prisional com suas práticas discricionárias e ilegais de punição extra-sentença. Uma tese inspirada diretamente em Michel Foucault. Dito isto, gostaria de tecer algumas observações mais gerais sobre o fenômeno do encarceramento contemporâneo. Em 1995, passei três meses frequentando uma cela do IPPOO com 11 presos. Só não podia dormir. Usava os dias de visita para fazer a pesquisa.
Quando leio notícia de 8 presos mortos em motim no presídio em Itaitinga, fico pensando sobre como retóricas de governo mascaram os fatos. O trabalho Revolta na sociedade dos cativos, sobre rebeliões dos presídios no CE, foi minha monografia de conclusão de curso de graduação. Lembro que rebelião, seguida de fuga, D. Aloísio Lorscheider como refém, foi liderada pelo Carioca, preso no IPPS. 15 de março de 1994. O sistema carcerário já era lotado. Já ocorria o problema de ter presos cumprindo a pena no IPPOO, o que não era permitido por lei. No cotidiano, havia muitas armas e drogas, e muitas punições extra-legais, tranca, tortura e também muito comércio ilegal. Na cela onde pesquisei, havia onze presos, doentes, um estuprador era seviciado diariamente, detento na cela com arma de fogo. O sistema carcerário estava cercado por escândalos de corrupção e desvio de dinheiro, muita gente ficou rica desviando recursos. As condições de trabalho de PMs horríveis, os da muralha principalmente, é considerada punição trabalhar na guarda do presídio.
Perda de controle
De lá para cá, houve investimentos para construção de novas unidades e as casas de custódia foram um avanço. Mas a massa carcerária explodiu. A situação é insustentável. O encarceramento em massa no ritmo em que está sendo produzido é um abismo. O governo perdeu o controle. Não apenas o governo do CE, especialistas em prisões no mundo generalizam isso. Apresentam os fatos como uma crise mundial. No artigo As contradições da "sociedade punitiva": o caso britânico, David Garland discute esses questões mais amplas. Para ele, A política penal de governo e suas retóricas baseiam-se no discurso da punitividade, uma nova política da crueldade. Funções corretivas da política penal foram deixadas de lado. Punir e neutralizar criminosos passaram a ser princípios do novo regime penal. Governos midiáticos estão explorando politicamente sentimentos de vingança e estimulando-os. Uma forma de despistar a falência do sistema. Desejos de um público temeroso são incitados e excitados para justificar abandono do caráter corretivo da pena privativa de liberdade. Discursos de "recuperação" do preso e de sua falência, pela evidência da reincidência, são usados para justificar desinvestimento público. Desinvestimento público na reintegração do egresso do sistema prisional em geral. Apenas uns poucos terão acesso a tais oportunidades. A maioria da massa carcerária está sendo tratada por governos como elementos incapazes e destinados à segregação prisional. Declarar que a massa carcerária é incapaz é uma estratégia para diminuir investimento em políticas de reinserção e reintegração do egresso.
Segregação punitiva
A segregação punitiva da massa carcerária ampla e numerosa faz da prisão uma cidade prisional ao lado da cidade-favela em oposição aos ricos. Os "bairros nobres" funcionando como uma "cidade de muros" (cf. Caldeira) segregam o pobre na favela ou na prisão. Essa onda punitiva contra os pobres (cf. Wacquant) é uma resposta penal e carcerária à demissão social do Estado contemporâneo. Por mais caro que seja manter e abrir novos presídios, isso é uma indústria, um mercado, gera divisas, lucros e contratos e fortunas. O montante do investimento público para integrar socialmente é gigantesco e, portanto, abandonado como perspectiva de Estado. A política pública torna-se uma ferramenta provisória, compensatória e fadada a falhar, pois não buscar reverter o quadro, apenas tocar o problema de lado ou empurrá-lo para frente. As falas do governador Cid Gomes, do Estado do Ceará, evidenciam isso. Sobre os eventos de morte de presos sob custódia do Estado, ele afirmou para o jornal O Povo que se tratava de "algo comum", ele referia-se à morte de 7 ou 8 presos sob custódia do estado, e que a briga de preso como "algo comum" teria motivado tudo isso. Cid diz que “o problema nessa área infelizmente vai existir. Quem está no presídio já tem uma conduta problemática e briga. Entre eles, infelizmente, é algo comum, apesar de todos os esforços que a gente tem feito pra tornar as casas de privação de liberdade espaços que ofereçam maior dignidade". O governante fala que o problema vai existir, como se fosse um fenômeno natural, e transfere culpa para "conduta problemática" do preso. Usa o "infelizmente" duas vezes para dizer que é natural, "algo comum" (8 mortos no presídio sob custódia do Estado? É algo comum?). Ainda emplaca "apesar de todos os esforços", ou seja, num momento grave de assassinato de presos sob custódia do Estado, ele se auto-elogia. Enfatiza que faz todos os esforços, o problema é o outro, não é o governo, o governo está envidando "todos os esforços". E finaliza que governo tem feito seu papel para dar dignidade aos presos. E a tortura denunciada? E greve de fome motivada por maus tratos?

sábado, 9 de março de 2013

A racionalidade do assaltante e a incompetência do policiamento: uma relação a ser pesquisa e debatida.

As chances de praticar assaltos a mão armada e dar certo, buscando realizá-los várias vezes, como forma aquisitiva, são muito atrativas. É esse tipo de racionalização feita por sujeitos criminais que pode ser inferida a partir de falas de interlocutores dos trabalhos de campo realizados por membros do Laboratório de Estudos da Violência, da UFC. Ou seja, praticantes de assaltos estão avaliando o cenário como favorável para a realização de assaltos na cidade de Fortaleza. Esse dado evidencia que há uma avaliação negativa de praticantes de assalto em relação à política de segurança pública na capital. Em uma pesquisa que realizei na Praia do Futuro, entrevistei um jovem que já havia praticado assalto na praia, um jovem em conflito com a lei, e ele me explicou que os assaltos tornavam-se mais frequentes quando os praticantes de assalto percebiam "furos" na organização do policiamento cotidiano. O ato de observar e avaliar se o policiamento está sendo realizado de modo competente foi um ato apontado por ele como sendo central para as práticas criminais, e o jovem que eu entrevistei falou diretamente na "incompetência da polícia" em realizar a segurança na área, sendo ele próprio um ex-praticante de assaltos, como ele se definiu na ocasião em que o entrevistei. A racionalidade dos assaltantes está monitorando e avaliando as competências do policiamento para vislumbrar oportunidades de realização de assaltos e para mensurar chances de sucesso. Há uma racionalidade do crime que se exerce avaliando o funcionamento da racionalidade da polícia. As falhas desta são celebradas pela astúcia daquela.

Relato etnográfico de uma morte matada.

Descalço, ele passou correndo como um louco, a pistola no cós da bermuda de surfista. Saiu de um beco da favela, em um pulo arrojado de três metros de altura, cortou caminho pela beira da praia, subiu pelas pedras do paredão e adentrou em outro beco, no lado mais seguro para ele, perto de sua rua, de sua casa, de sua favela. Havia uma fronteira mágica entre os dois becos, segmentos de territórios em guerra. Muito sangue já havia sido derramado “na fronteira”. A esquina era ponto de encontro para as rodas de conversação dos jovens e também lugar de uma memória fúnebre que os jovens guardavam por meio de seus relatos sobre os nomes daqueles que haviam tombado sem vida naquela esquina e nas próximas. Ele vinha fugindo de uma terrível perseguição que já perdurava quase metade da semana. A ansiedade quanto ao desfecho desse evento se expressava coletivamente a partir dos rostos angustiados de amigos, colegas, parentes e moradores da comunidade. Os parentes do jovem que ele havia matado a tiros, durante uma cobrança de dívida de drogas, estavam armados até os dentes, querendo fuzilá-lo. Os policias militares estavam acompanhando de longe, omissos, olhavam de lado como se não o vissem passar, sem se envolver diretamente, com exceção do policial que era irmão do jovem assassinado por Marco Antônio e que estava injuriado com o caso, ele tinha jurado se vingar pela morte do irmão. A omissão dos colegas de farda era vigilante. Podiam intervir a qualquer momento se fosse para ajudar o colega em sua caçada. Havia rumores de que um matador da PM tinha sido convocado para ajudá-lo a derrubar o “vagabundo” que matara seu irmão. Os matadores da PM são muito temidos pelos jovens da favela quando se associam para perpetrar execuções como essa. As falas deles expressavam o fatalismo da situação. Era muito difícil escapar de uma caçada realizada por matadores da PM. Mais cedo ou mais tarde, o desfecho era previsível. O bichão ia ser derrubado. Quando Marco Antônio era adolescente, ele já fazia parte de uma das facções de jovens armados da favela. Realizava assaltos e também ele traficava drogas para sobreviver. Um dia, seu padrasto espancou mais uma vez sua mãe, o que provocava sentimentos irreconciliáveis para ele. Marco Antônio ficou possesso com a regularidade da violência doméstica contra a mãe, não aguentou e tirou a vida do companheiro dela, o agressor. Os policiais militares não gostavam dele, pois já havia trocado tiros com a polícia. Para os policiais, isso era uma afronta inaceitável, serem recebidos a bala. Havia aí um sentimento de falta de respeito, avaliação compartilhada também por diversos jovens armados que, em geral, buscavam fugir da polícia, mesmo que estivessem com poder de fogo para iniciar um tiroteio. Todavia, havia exceções, como sempre. O parceiro de Marco Antônio, por exemplo. Eumir, parceiro dele em missões (assaltos a mão armada), era conhecido como um temido matador de policiais. Ele havia tomado essa decisão, após um policial militar ter dado uma tapa na cara da mãe dele para que ela confessasse onde o vagabundo do filho dela estava. A tapa na cara de uma mãe num universo onde a imagem do masculino está centrada num modo de se imaginar cabra macho não era recomendável nem mesmo para a polícia. Tudo se tornava pessoal e íntimo que o ódio era destilado nessa modalidade de agressão à figura da mãe. Eumir atropelou o policial e passou a ser caçado por isso. Ainda derrubou seis policiais antes de ser preso. As notícias sobre as torturas sofridas por Eumir fazem parte da agenda das rodas de conversação. E as torturas não param. Mesmo no presídio, cumprindo pena em regime fechado, numa ala de segurança máxima, Eumir paga diariamente com seu corpo já quase minguado pela ousadia. Policiais fazem questão que a notícia corra. Deste modo, quando foi preso, Marco Antônio apanhou muito, apanhou por si e pelo comparsa matador de policiais. As torturas são co-extensivas nesse caso. Depois de três anos preso pela morte do padrasto, em menos de duas semanas, após sua soltura, ele cometeu novo assassinato e não pudemos mais conversar, a proximidade com ele tornou-se perigosa demais para mim e para todos. Apenas segui a etiqueta ampla de realizar o distanciamento de um bichão envolvido em uma treta muito grave. Era a atitude de seu círculo, com quem eu convivia há mais de um ano. Uma comissão de amigos foi até ele tentar demovê-lo da guerra em que se metera. Havia a alternativa da fuga. Ser acolhido por algum segmento de sua rede de parentesco em algum lugar do interior do Estado, clandestino, embrenhado nos matos, longe da Capital. A comissão voltou pessimista. Concluíram que não havia mais o que fazer. O destino de Marco Antônio estava traçado. Um mês antes da caçada, Marco Antônio estava lanchando numa bodega da favela, quando passaram dois policiais que o reconheceram de outros tempos, dos tempos dos assaltos e das trocas de tiros com a polícia, e da parceria com Eumir. Os policiais resolveram então dar as boas vindas para o “vagabundo da favela”. Deram-lhe umas surras para comemorar que o “vagabundo” estava de novo em liberdade e nas áreas. Foi assim que eu entendi melhor por que os jovens me diziam que a favela era extensão da prisão e vice-versa. “Aqui é a prisão”. No mesmo dia em que foi recepcionado violentamente pelos policiais, Marco Antônio, seja como forma de revide, ou como forma de expressar sua raiva, procurou um traficante local, velho conhecido dele, e ofereceu seus serviços armados. O traficante o contratou como cobrador de dívidas. Armado com uma pistola de uso exclusivo das forças armadas, Marco Antônio foi cumprir sua primeira missão de cobrança. Deu tudo errado, o jovem a ser cobrado não gostou da abordagem, discutiram no beco da favela e Marco Antônio o alvejou com vários tiros, matando-o a queima roupas. A vítima era como já relatei irmão de policiais. Foi o estopim para o início da caçada. Enquanto Marco Antônio me cumprimentava, ele no meio da rua, eu no primeiro andar do barraco da Matilde, onde estava conversando com uma turma de jovens do círculo dele, inclusive primos, fiquei receoso que houvesse mais um tiroteio e me deitei no chão do barraco. Os jovens que estavam comigo, discretamente, já tinham feito o mesmo, eu já podia segui-los quase simultaneamente nessa comunicação não-verbal e não-intencional diante dos perigos das guerras cotidianas. O sinal de perigo maior foi quando percebemos a aproximação da viatura da Ronda do Quarteirão, programa de policiamento comunitário da Polícia Militar do Ceará, a mesma equipe que havia torturado com açoites de fios de eletricidade o Raimundo, outro jovem armado, meu interlocutor em campo, para que ele confessasse um assalto fazia algumas semanas. Pensei comigo mesmo que a situação ia ficar complicada, um tiroteio se aproximava. Marco Antônio não arredou o pé da pequena calçada de onde me cumprimentara. Estava em franca atitude de desrespeito e de confronto com os policiais militares. Para a surpresa geral, os policiais militares do Ronda não fizeram a abordagem. Marco Antônio mostrou a pistola na cintura para os policiais e eles passaram em frente, foram chamar reforços. Os novatos do Ronda ficaram supostamente com medo do confronto. Agiram com prudência, pois um tiroteio na estreita rua ia colocar em risco muitos moradores. Eram três horas da tarde de domingo. O grupo de extermínio montado para apagar Marco Antônio estava à espreita, procurando em todos os becos pelo seu paradeiro. Mas Marco Antônio que nasceu e se criou na favela como bicho solto sabia se movimentar muito bem, ele conhecia o labirinto de becos como a palma da sua mão. Uma mobilização maior de policiais com outras equipes, como Raio e Cotam, fizeram o cerco ao Marco Antônio e deram apoio para a equipe do Programa Ronda do Quarteirão prendê-lo sem tiroteio. O medo e a prudência juntos garantiram uma prisão sem mortes, todavia o advogado do traficante conseguiu soltar Marco Antônio no dia seguinte, com muita rapidez. A pistola tinha sido apreendida, mas Marco Antônio pegou outra, também de uso exclusivo das forças armadas e voltou para a posição de caça ou caçador. Aquela movimentação estava deixando todo mundo cansado. Para os moradores, ficar observando e participando da movimentação do iminente extermínio era muito estressante. Cena várias vezes repetida. Os moradores estavam cansados disso. Um tiroteio pode ocorrer a qualquer hora e uma bala perdida acaba ferindo ou matando quem não tem nada a ver com a história, como sempre acontece, há anos. Muitos jovens estavam manifestando a ansiedade de que houvesse logo um desfecho. Um primo de Marco Antônio me revelou que a família já tinha perdido as esperanças e que queriam que tudo terminasse logo, ou seja, já davam como certa a morte de Marco Antônio antes mesmo de sua morte efetiva. Ele era um morto vivo. Era o que todo mundo dizia. Ele sabia disso e agia com total liberdade. Nunca vi um sujeito tão livre como ele pouco antes de morrer. Parecia sorrir da própria morte. Não pertencia mais a este mundo. Com poucos dias, o primo dele me telefona para avisar: “Derrubaram o Marco Antônio, com onze tiros”. Ele tinha 20 anos de idade. O velório foi pungente.

Drogas, armas e insegurança pública no Ceará.

No Ceará, no que diz respeito às dinâmicas dos mercados ilícitos das drogas, gostaria de ressaltar as seguintes questões:
1. O processo de interiorização do comércio de crack. Há uma migração de traficantes da capital para o interior, gerando concorrência ou cooperação, dependendo do caso específico, com traficantes atuantes em pequenas e médias cidades do sertão, do litoral e das serras cearenses. As cidades da orla marítima, inseridas no circuito das práticas de turismo e de segunda moradia de habitantes das camadas médias e médias altas também se tornaram mercados aquecidos, envolvendo disputas entre facções armadas e atraindo igualmente a atenção de grupos policiais que fazem extorsão das "quadrilhas". No sertão, o que chama a atenção é a convergência entre dois fenômenos: as favelas rurais e o comércio de crack. No sul do Ceará, por exemplo, fronteira com Pernambuco, há uma situação muito especial que envolve atuação sistemática da Polícia Federal, da PM e da Polícia Civil e inclusive gerando atividades de cooperação entre as forças policiais do Ceará e de Pernambuco no que diz respeito à questão do tráfico regional de maconha, que já é também cultivada em terras cearenses da Região Sul, o Cariri, e em outros lugares do sertão. As motocicletas estão funcionando como uma moeda no tráfico de drogas no sertão, mas as armas também são moeda, além de carros, terras, mercadorias roubadas nos assaltos a cargas nas rodoviais federais e estaduais, e há conexões entre o tráfico de cocaína (não apenas crack) nas chamadas capitais regionais do Ceará (Juazeiro do Norte, Crato, Iguatu, Sobral, principalmente, mas em outros municípios do interior). No caso da cocaína, já há mercado consumidor no próprio sertão e a relação com comerciantes, empresários e fazendeiros buscando fontes alternativas e criminais de ganhos pode ser evidenciada, principalmente, no caso do sul e do norte do Ceará.
2. Na Capital, Fortaleza, que tem de ser pensada em termos de espaço metropolitano, a Grande Fortaleza, as dinâmicas do crack geram fortes e letais disputas entre pequenas facções, a segmentação é intensa, e não há indícios por enquanto de formação de comandos seguindo a lógica territorial do que foi o modelo do Rio de Janeiro antes das UPPs. A segmentaridade das lutas faccionais entre pequenos traficantes e alguns traficantes de envergadura mediana, que atuam como ex-traficantes do varejo que viraram atacadistas de médio porte (atravessadores), mas que sofrem forte concorrência de outros atores emergindo com a mesma motivação e também forte controle extralegal de policiais que promovem extorsões desses traficantes médios. O forte do tráfico de cocaína no varejo na Capital ocorre via Delivery, são traficantes de classe média que funcionam como intermediários e levam drogas para venda diretamente nas festas, casas, residências, condomínios, restaurantes e bares. Esse tipo de traficante em geral não anda armado e nem usa escolta armada, assemelha-se ao que está acontecendo no Rio de Janeiro com os novos traficantes da classe média, atuando junto aos condomínios das camadas médias altas e altas. Há também traficantes de classe média, estudantes universitários ou já com nível superior, que atuam nas raves, forrós e outras festas com concentração de potencial público consumidor de drogas ilícitas, mantendo forte concorrência entre si, o que tem levado a denúncia de uns contra outros para a PF e para as polícias estaduais, e assim estão sendo monitorados nas festas de tipo rave e outras similares.
Há uma reclamação geral por parte dos traficantes das favelas que a qualidade do pó, da cocaína que está chegando na cidade, por meio da favela, é muito ruim, de baixa qualidade, e por isso é um pó pouco atrativo para clientes de classe média alta, de modo que parte considerável da cocaína das favelas está sendo vendida na própria favela ou para segmentos das camadas populares ou classe média baixa. Alguns policias em serviço são clientes assíduos desses pontos de venda de cocaína, o que os coloca em proximidade com traficantes, e além da relação como cliente, há, em alguns casos, relação de extorsão ou de cooperação, o que gera violência letal, quando acordos são quebrados. O controle policial dos assaltantes passa pela negociação com as posições que eles podem ocupar como traficantes e vice-versa. A passagem entre assalto e tráfico de drogas tem sido um ponto de divergência entre policiais e bandidos, uma vez que estes, quando transitam sem fazer acordos, criam situações de descrédito por parte do que os policiais esperam em termos de "lealdade" ou "obediência" aos pactos ou ordens firmados entre eles.
3. Não há territórios sob domínio armado de traficantes no Ceará, como o modelo do Rio, do CV. Mas há indícios de intensa troca entre práticas do PCC em São Paulo e as formas de atuação de traficantes no Ceará, e o caso de exceção do Rio é a favela da Rocinha que é um lugar de trânsito livre para traficantes do Ceará que lá se hospedam e até mesmo moram devido a conexões entre redes de parentesco ligadas à migração nordeste-sudeste. Por exemplo, há indícios de traficantes atuando no sertão do Ceará com conexões diretas com comandos de favelas cariocas e do mesmo modo há indícios de traficantes paulistas vindo atuar na capital e no interior do Ceará, nem sempre são paulistas de origem, mas passaram por presídios de São Paulo ou do Rio. Prefeituras do interior e vereanças, também na capital, mas principalmente no interior, são pontos de atração para a consolidação de poder de traficantes mais poderosos e que estão buscando inserção no campo da política dos políticos profissionais.
Os pistoleiros ligados a esses traficantes, quando não são eles próprios as duas coisas (políticos e pistoleiros), estão avançando nesse campo da política e isso tem sido objeto de discussões públicas, inclusive na mídia impressa, com reportagens sobre o avanço do crime nos postos de gestão nos municípios do interior. A questão das armas está sendo subestimada no que tange ao funcionamento desses mercado ilícitos de drogas e essa é a principal hipótese de trabalho das pesquisas realizadas até agora: queremos identificar o problema da agência das armas no circuito comercial das drogas, principalmente, do crack.