terça-feira, 19 de março de 2013

As metáforas da guerra e da cidadania nos estádios de futebol no Ceará.

Introdução 
O objetivo deste texto é propor reflexões de um ponto de vista sociológico sobre os significados da violência nos estádios de futebol à luz da análise dos conflitos sociais que se expressam no idioma midiático e espetacular dos eventos futebolísticos e no contexto de interação social dos públicos destes eventos. Como sociólogo, minha fala busca propor problematizações sobre esses fenômenos e oferecer ferramentas analíticas que possam contribuir para as bases conceituais de qualificação do debate público em torno do “combate à violência nos estádios de futebol e a questão das torcidas organizadas” que dá título ao desafio proposto para reflexão pelo Ministério Público do Estado do Ceará (onde fiz no dia 14 de janeiro de 2012 uma intervenção inicial que deu origem a esse texto que aqui reproduzo com pequenas modificações).
Portanto, mais do que soluções concretas, no sentido de sugerir medidas e encaminhamentos sobre o que a sociedade e o poder público devam fazer, nós, sociólogos, temos por missão específica desenvolver pesquisas teóricas e empíricas sobre os problemas sociais para que possam ser apreendidos como problemas sociológicos e, deste modo indireto, não-aplicado, intervir nos debates públicos com a intenção explícita de devolver na forma de provocações e argumentos críticos, as reflexões e interpretações analíticas, os questionamentos levantados pelos desafios da vida coletiva que nos instigam enquanto pesquisadores.
E para não frustrar completamente aqueles que esperam da Universidade contribuições mais incisivas e diretivas, gostaria de propor que os atores institucionais envolvidos no debate público possam discutir a possibilidade de que um seminário de pesquisa em parceria com a UFC e a UECE, entre outras instituições de ensino e pesquisa que queiram aderir à proposta, possa ser realizado para que os grupos de pesquisa e os pesquisadores individuais dessas instituições de produção de conhecimento possam apresentar os trabalhos que estão sendo desenvolvidos sobre as atividades esportivas na vida contemporânea.
Quem sabe um livro organizado sob os auspícios de reuniões de trabalho entre as várias equipes pudesse ser organizado para consolidar a discussão ou outros meios de divulgação das pesquisas já existentes sobre o assunto em pauta. Enquanto pesquisadores acadêmicos, propugnamos pela reafirmação do nosso compromisso, enquanto Universidade Federal do Ceará, principalmente, como representante do Laboratório de Estudos da Violência, de nos fazermos presentes para colaborar com essa construção pública de uma vida social pacífica, democrática e socialmente justa.

Propriedades estruturais do evento esportivo moderno 
Segundo interpretação de José Sérgio Leite Lopes (1995) acerca do pensamento do sociólogo Norbert Elias, portanto, colada à resenha do livro Em busca da excitação, a invenção moderna do esporte está centrada quatro características estruturais:
• “Pressuposição de um jogo em que haja uma relativa igualdade de chances entre os dois contendores.
• Prazer provocado por uma tensão agradável, somente possível se há esse arranjo de equidade entre os dois campos de combate ou excitante o combate simulado.
• O relaxamento final da tensão, com grandes chances de catarse, devido à vitória de um dos campos após um equilíbrio das forças em disputa.
• A limitação da violência física. "Neste sentido, o esporte é um fenômeno central para o processo de construção de uma vida social baseada no “autocontrole das emoções, dos afetos e dos sentimentos”, e, principalmente, da agressividade nos indivíduos que compõem as diversas classes sociais na vida moderna. O esporte em sua acepção moderna é um componente fundamental da tendência de contenção e eliminação da violência generalizada ou aleatória por meio do desenvolvimento de um autocontrole interiorizado sobre a agressividade de uns sobre os outros na vida social. O esporte moderno, portanto, nesse sentido, não estaria em linha de continuidade com a prática esportiva da antiguidade onde não havia uma “sensibilidade repulsiva em relação à violência” no esporte. Ao contrário, a maioria apreciava a violência no esporte. No nosso caso, no caso atual, existe uma maioria que expressa repulsa pela violência no esporte. Essa inversão é historicamente uma conquista das concepções modernas do que Elias chamava de processo de autocontrole da agressividade contra o outro e de instauração de uma vida social “parlamentar” ou cujos conflitos são organizados sob a forma parlamentar, da disputa retórica, verbal, discursiva ou ideológica, sem uso de violência física.

Violência ritual
Desse modo, o problema principal para nós não seria o da violência no esporte, mas o de como garantir a violência ritual pacificada das torcidas, portanto, como garantir a excitação que faz parte da competição esportiva moderna sem que o excesso de disciplina e de autocontrole que se exige dos indivíduos na vida rotineira não leve aos transbordamentos dos limites de ritualização da violência nos estádios. Dito de outro modo, a experiência de excitação coletiva nos estádios em torno de uma violência ritual pacificada nas relações entre as torcidas funciona como um contraponto da exigência rotineira de disciplina e de falta de excitação na vida ordinária dos indivíduos. A experiência do estádio envolve uma ritualização da transgressão da vida cotidiana e enfadonha, marca um momento extra-ordinário, um momento de excitação, por conseguinte.
Em geral, nos estádios, as torcidas estão exercitando relações jocosas entre si, relações de brincadeira que estimulam uma situação de excitamento para além das rotinas da vida ordinária. As torcidas são profundamente criativas, inventivas e provocativas do campo de valores que organiza a vida social. As torcidas desenvolvem “formas lúdicas de interação social mediadas pelo futebol, na forma de provocações, sátiras, pilhérias, desafios ou apostas, isto é, ‘jogos’ paralelos aos jogos de futebol propriamente ditos” (Gastaldo, 2010). As torcidas desenvolvem entre si formas de gozação mútua que desempenham funções morais na vida social, principalmente, da sociabilidade masculina. As torcidas são parceiras na gozação mútua. Mas como essas gozações, essa jocosidade, esse humor futebolístico se realiza em situações de conflitos sociais, há sempre um potencial disruptivo, de excesso, de quem não sabe brincar, ou não entendeu a brincadeira. O risco de ridicularização nessas situações está sempre presente (Gastaldo, 2010).
Brigas entre torcedores são antes a exceção do que a regra, apesar do potencial de briga existir no âmbito das relações jocosas entre os torcedores uma vez que: “é o desempenho de cada equipe de futebol defendida pelos parceiros e que o resultado dos jogos é imponderável, a cada rodada dos diferentes campeonatos as relações de força entre as equipes se alteram, resultando em uma variedade que poderia ser chamada (...) assimétrica alternada, embora a alternância esteja condicionada aos fatos do Jogo” (p.313). Em geral, as práticas esportivas envolvem na modernidade um aprendizado do combate físico e simbólico com poucos riscos de violência, o aprendizado do autocontrole e do fair-play (jogo limpo)(Lopes, p148). O futebol é um fenômeno de construção de identidades coletivas. Pertencer a uma torcida envolve a aquisição de uma fonte de identidade social. As equipes de futebol passam a funcionar com símbolos representativos de diversas comunidades das camadas trabalhadoras e também das camadas médias e médias altas.
Para os jovens das camadas populares, o pertencimento às torcidas é um fator de fortalecimento de identidades que passam por questões intergeracionais, as adesões aos times nas famílias, de gênero, sobre a concepção de masculinidade e também de classe, pela expressão dos segmentos estabelecidos e outsiders, ou excluídos, que são reordenados pelos enquadramentos morais das relações entre as torcidas. “o prazer da prática ou do espetáculo esportivo deve-se não ao descanso e ao relaxamento, proporcionados por uma situação de lazer (entendida no senso comum sociológico como complementar e antitética ao trabalho), mas à excitação e à tensão produzidas pelo enfrentamento individual ou coletivo de corpos, pela excitação agradável do simulacro dos enfrentamentos guerreiros violentos, porém com respeito à vida” (Lopes, p.155). O que se busca no espetáculo esportivo e a linguagem midiática é um fato de produção da significação dessa busca que não pode ser deixado de lado, pois a linguagem do confronto e da guerra da violência ritual pacificada está em função da construção da agenda midiática da competição entre os times realizada pela mídia.
Num contexto onde os indivíduos estão buscando excitação e extravasamento de emoções, quando ocorre desses segmentos que buscam uma vida que possa ser considerada significativa e excitante reelaboram nos enquadramentos morais das relações de força entre as torcidas os seus pertencimentos estabelecidos ou excluídos no conjunto das significações sociais mais amplos, alguns segmentos podem se tornar máquinas de guerra que metaforizam a exclusão da cidadania pelas atividades de quebra do jogo da violência ritual ou então pelo uso de códigos de percepção e avaliação dos limites da violência ritualmente permitida que difiram dos legalmente ou socialmente hegemônicos.

Risco
O sentido do risco é um importante fator de excitação e extravasamento de emoções que oferece ocasiões de ruptura com o rotineiro, com o ordinário e com o que há de vazio de sentido na vida cotidiana de exclusão e desigualdades. O esporte não está fora da sociedade. Se crimes contra a vida não são investigados, sendo relegados a uma posição de esquecimento generalizado, levando a um acúmulo de sofrimentos sociais sem precedentes, principalmente, entre as vítimas das camadas populares, por que haverão as torcidas de manter a civilidade nas trocas jocosas com seus oponentes quando os riscos de ridicularização são potencializados por múltiplas vitimizações e exclusões sociais no campo social mais geral? A violência no estádio quando quebra com o jogo não estaria metaforizando o estado de guerra permanente que se instaurou na vida civil? Com isso não queremos dizer verdades absolutas, mas apenas contribuir para a problematização das verdades sempre parciais e aproximativas que precisamos criar coletivamente sobre o problema da violência na vida social contemporânea e, em especial, na vida esportiva do nosso Estado e do nosso país.

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