quarta-feira, 20 de março de 2013

Lei e ordem: uma leitura a partir de Ralf Dahrendorf – parte I


Ralf Dahrendorf é um sociólogo alemão cujas reflexões e análises sempre penderam para a defesa do liberalismo. Ele mesmo se considerava um “liberal não-reconstituído do século XVIII”. Convidado para uma série de conferências acadêmicas, o pensador organizou um roteiro de exposições intituladas “A Lei e a Ordem”, nas quais ele abordava questões relativas à violência, à anomia e ao contrato social. Ao ler a obra, notei que a discussão poderia ser de muita valia para quem se interessa por essas questões, justamente por apresentar argumentos teóricos que nós, por nossa formação, não costumamos lidar. Vou apresentar algumas delas neste texto, que não se pretende exaustivo, mas provocativo.
Para quem acompanha este blog, será possível notar pontos de divergência e de articulação com reflexões feitas em postagens anteriores. O que se tenta construir com esse esforço é um painel sobre crime, violência e segurança pública, não por acaso o título deste blog.

Anomia
Dahrendorf dá início a sua exposição apresentando um exemplo extremo de anomia: o fim do nazismo. Segundo ele, nos dias que sucederam à derrocada das forças de Hitler, Berlim se viu em um estado de caos social como nunca se vira. Os alemães eram mortos pelos soldados russos sem qualquer motivo. Ao mesmo tempo, os novos ocupantes do território alemão demonstravam sinais de generosidade e desprendimento que deixam a população perplexa. Berlim vivia um “momento supremo e horrível de absoluta falta de leis”.
Para o autor, o que aconteceu em Berlim é sintoma de um fenômeno mais amplo marcado por manifestações mais individuais e mais ocasionais de agressão social diferentemente do modelo anterior, cujo pano de fundo seria a luta de classes. “O declínio da eficácia da lei pode ser descrito como uma das contradições da modernidade (...) Queríamos uma sociedade de cidadãos autônomos e criamos uma sociedade de seres humanos amedrontados ou agressivos. Buscávamos Rousseau e encontramos Hobbes. No nível das forças sociais e políticas o conflito novo, e até agora pouco entendido, é resultado da tendência, da parte de uma grande classe majoritária, em se definir as pessoas fora de uma fronteira, para se proteger a própria posição” (pg.13).
O que estaria em jogo, segundo Dahrendorf, não é a redistribuição de recursos escassos dentro de limites aceitos, mas os conceitos centrais de lei e de ordem, ou seja, o próprio contrato social. O risco de se viver em uma sociedade regida pela anomia, acrescenta, é a proposição de uma solução baseada em um estado tirânico. “Uma vez surgido um problema hobbesiano de ordem, a solução também tende a ser hobbesiana”, afirma.
Vale lembrar que o autor está se referindo a uma situação de aumento de criminalidade vivida pelos países desenvolvidos, entre as décadas de 1950 e 1980, especialmente no que se refere a homicídios e crimes contra a propriedade. A perplexidade recai sobre o paralelismo entre a produção contínua de riqueza e a expansão de criminalidade. Guardadas as proporções, essa é a mesma pergunta que fazemos hoje no que tange ao processo de melhoria da renda e das condições sociais das camadas mais pobres da população que ocorreu conjuntamente com um acirramento dos crimes contra a vida, mais precisamente nas capitais da Região Nordeste e nos municípios do Interior.

Anomy versus Anomie
A explicação dada por Dahrendorf é a de que diversos fatores (desvios, desconhecimento, valor oculto e anomia) fazem com que atos contrários à norma não sejam punidos, gerando impunidade. A consequência direta seria a erosão da lei e da ordem.  A definição de anomia (anomy) adotada pelo sociólogo alemão difere da empregada por Durkheim (anomie). A anomy remonta a um conceito do século XVI que se relaciona a algo “portador de distúrbios, dúvidas e incertezas sobre tudo”. Para o autor, “a anomia é uma condição social que pode fazer brotar vários tipos de comportamento (...) A conexão entre anomia e crime não é causal. A anomia favorece uma condição básica, onde as taxas de crimes tendem a ser elevadas; e a análise do crime nos conduz a um melhor entendimento sobre a anomia” (pg. 27, grifo do autor).
Após fazer um breve levantamento das concepções teóricas sobre anomia de Durkheim, Merton e Giddens, Dahrendorf irá estabelecer a sua própria definição, a de que anomia é “uma condição social em que as normas reguladoras do comportamento das pessoas perderam sua validade. Uma garantia dessa validade consiste na força presente e clara de sanções. Onde prevalece a impunidade, a eficácia das normas está em perigo. Nesse sentido, a anomia descreve um estado de coisas em que as violações das normas não são punidas. Este é um estado de extrema incerteza, no qual ninguém sabe qual comportamento esperar do outro, sob determinadas situações” (pg. 28).
Além das sanções, a validade das normas baseia-se em “elos” culturais, chamados de ligaduras. “As normas são válidas se e quando elas forem tanto eficazes quanto morais, isto é, quando elas forem (julgadas) reais e (julgadas) corretas”. Por causa disso, há uma relação entre os conceitos de legalidade (eficácia positiva das normas) e legitimidade (coincidência entre eficácia e moralidade). A anomia, então, representa uma condição na qual “tanto a eficácia social quanto a moralidade cultural das normas tende a zero”. É preciso deixar claro que a anomia absoluta, assim como a utopia, é irreal e impraticável. Elas existem sempre como possibilidade, tendência e sinais.  
O aspecto mais fecundo dessa análise é a ampliação de nossa compreensão acerca da violência e da criminalidade, indo além do mero reflexo das condições econômicas ou de uma infinidade de atos individuais isolados. 

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