Ralf Dahrendorf é um sociólogo
alemão cujas reflexões e análises sempre penderam para a defesa do liberalismo.
Ele mesmo se considerava um “liberal não-reconstituído do século XVIII”. Convidado
para uma série de conferências acadêmicas, o pensador organizou um roteiro de
exposições intituladas “A Lei e a Ordem”, nas quais ele abordava questões
relativas à violência, à anomia e ao contrato social. Ao ler a obra, notei que a
discussão poderia ser de muita valia para quem se interessa por essas questões,
justamente por apresentar argumentos teóricos que nós, por nossa formação, não
costumamos lidar. Vou apresentar algumas delas neste texto, que não se pretende
exaustivo, mas provocativo.
Para quem acompanha este blog,
será possível notar pontos de divergência e de articulação com reflexões feitas
em postagens anteriores. O que se tenta construir com esse esforço é um painel
sobre crime, violência e segurança pública, não por acaso o título deste blog.
Anomia
Dahrendorf dá início a sua
exposição apresentando um exemplo extremo de anomia: o fim do nazismo. Segundo
ele, nos dias que sucederam à derrocada das forças de Hitler, Berlim se viu em
um estado de caos social como nunca se vira. Os alemães eram mortos pelos
soldados russos sem qualquer motivo. Ao mesmo tempo, os novos ocupantes do
território alemão demonstravam sinais de generosidade e desprendimento que
deixam a população perplexa. Berlim vivia um “momento supremo e horrível de
absoluta falta de leis”.
Para o autor, o que aconteceu em
Berlim é sintoma de um fenômeno mais amplo marcado por manifestações mais
individuais e mais ocasionais de agressão social diferentemente do modelo
anterior, cujo pano de fundo seria a luta de classes. “O declínio da eficácia
da lei pode ser descrito como uma das contradições da modernidade (...)
Queríamos uma sociedade de cidadãos autônomos e criamos uma sociedade de seres
humanos amedrontados ou agressivos. Buscávamos Rousseau e encontramos Hobbes. No
nível das forças sociais e políticas o conflito novo, e até agora pouco
entendido, é resultado da tendência, da parte de uma grande classe majoritária,
em se definir as pessoas fora de uma fronteira, para se proteger a própria
posição” (pg.13).
O que estaria em jogo, segundo
Dahrendorf, não é a redistribuição de recursos escassos dentro de limites
aceitos, mas os conceitos centrais de lei e de ordem, ou seja, o próprio
contrato social. O risco de se viver em uma sociedade regida pela anomia,
acrescenta, é a proposição de uma solução baseada em um estado tirânico. “Uma
vez surgido um problema hobbesiano de ordem, a solução também tende a ser hobbesiana”,
afirma.
Vale lembrar que o autor está se
referindo a uma situação de aumento de criminalidade vivida pelos países
desenvolvidos, entre as décadas de 1950 e 1980, especialmente no que se refere
a homicídios e crimes contra a propriedade. A perplexidade recai sobre o
paralelismo entre a produção contínua de riqueza e a expansão de criminalidade.
Guardadas as proporções, essa é a mesma pergunta que fazemos hoje no que tange
ao processo de melhoria da renda e das condições sociais das camadas mais
pobres da população que ocorreu conjuntamente com um acirramento dos crimes
contra a vida, mais precisamente nas capitais da Região Nordeste e nos
municípios do Interior.
Anomy versus Anomie
A explicação dada por Dahrendorf
é a de que diversos fatores (desvios, desconhecimento, valor oculto e anomia)
fazem com que atos contrários à norma não sejam punidos, gerando impunidade. A consequência
direta seria a erosão da lei e da ordem. A definição de anomia (anomy) adotada pelo sociólogo alemão difere da empregada por
Durkheim (anomie). A anomy remonta a um conceito do século
XVI que se relaciona a algo “portador de distúrbios, dúvidas e incertezas sobre
tudo”. Para o autor, “a anomia é uma condição social que pode fazer brotar
vários tipos de comportamento (...) A conexão entre anomia e crime não é
causal. A anomia favorece uma condição básica, onde as taxas de crimes tendem a ser elevadas; e a análise do crime nos
conduz a um melhor entendimento sobre a anomia” (pg. 27, grifo do autor).
Após fazer um breve levantamento
das concepções teóricas sobre anomia de Durkheim, Merton e Giddens, Dahrendorf
irá estabelecer a sua própria definição, a de que anomia é “uma condição social em que as normas reguladoras do comportamento das
pessoas perderam sua validade. Uma garantia dessa validade consiste na força
presente e clara de sanções. Onde prevalece a impunidade, a eficácia das normas
está em perigo. Nesse sentido, a anomia descreve um estado de coisas em que as
violações das normas não são punidas. Este é um estado de extrema incerteza, no
qual ninguém sabe qual comportamento esperar do outro, sob determinadas
situações” (pg. 28).
Além das sanções, a validade das
normas baseia-se em “elos” culturais, chamados de ligaduras. “As normas são
válidas se e quando elas forem tanto eficazes quanto morais, isto é, quando elas
forem (julgadas) reais e (julgadas) corretas”. Por causa disso, há uma relação
entre os conceitos de legalidade (eficácia positiva das normas) e legitimidade
(coincidência entre eficácia e moralidade). A anomia, então, representa uma
condição na qual “tanto a eficácia social quanto a moralidade cultural das
normas tende a zero”. É preciso deixar claro que a anomia absoluta, assim como
a utopia, é irreal e impraticável. Elas existem sempre como possibilidade, tendência
e sinais.
O aspecto mais fecundo dessa análise é a ampliação de nossa compreensão acerca da violência e da criminalidade, indo além do mero reflexo das condições econômicas ou de uma infinidade de atos individuais isolados.
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